Introdução
Trata-se de fato notório que a evasão fiscal, em seu sentido lato, faz-se presente nas sociedades desde o surgimento de toda e qualquer exigência de prestação pecuniária por parte dos cidadãos aos respectivos Estados.
Alguns autores, como Armando Giorgetti(1), ousam classificá-la como "irmã gêmea" do tributo, uma vez que esta verdadeiramente coexiste com os mais diversos sistemas tributários existentes - e é isso que de fato se observa.
Tal fato vem sido cada vez mais estudado pelos Estados, a fim de compreenderem-se as causas que originam tal situação, possibilitando a determinação dos meios que deverão ser adotados para sua extirpação.
Na visão de Antônio Roberto Sampaio Dória, são diversas as razões que levam à elisão fiscal: vão desde aquelas conaturais à condição humana e aquelas referentes a estruturas sociais, políticas e econômicas até as mais concretas, como a existência de lacunas na lei, que levam a uma falha no nexo entre a hipótese de incidência e o fato imponível (ou fato jurídico tributário).
São estas últimas que interessam ao Poder Legislativo, o qual procura dificultar a prática da "elisão" fiscal através da edição de normas que preencham as lacunas existentes na lei.
Com o advento do Projeto de lei complementar nº 77/99, posteriormente concretizado na Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, o presente tema foi diretamente atingido pela inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional (por meio da referida lei complementar), suscitando diversas dúvidas e debates acerca do planejamento tributário realizado por meios lícitos, de caráter preventivo, logo, realizado antes da ocorrência do fato gerador.
Conforme bem observado pelo professor Alberto Xavier, entre os pontos de discussão do supracitado projeto de lei havia a possibilidade de adoção de uma norma geral antielisiva, justificada superficialmente na exposição de motivos como "instrumento eficaz para combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito".(2)
Todavia, conforme nota-se da simples leitura do supracitado dispositivo legal, aquilo que deveria delimitar as hipóteses de incidência, a fim de evitar lacunas na lei, foi editado na forma de uma regra ampla e genérica, a qual pode resultar em atos arbitrários resultantes de interpretações abusivas de tal norma.
Desde a publicação da referida Lei Complementar, inúmeras discussões vem sendo postas em pauta nos principais fóruns onde o assunto é abordado. E mesmo depois de transcorridos nove anos da publicação do referido dispositivo, ainda não se tem nenhuma previsão a respeito de quando haverá um consenso sobre o assunto. Todavia, é cediço que a norma em análise carece de regulamentação, o que supostamente tornaria a interpretação do parágrafo único do art. 116 pacificada, ou, ao menos, mais uniforme.
De um lado, a autonomia privada do particular em contratar e assumir os procedimentos mais eficientes sob a ótica fiscal (direito à liberdade e à propriedade), muitas vezes para a sobrevivência de seu próprio negócio, e de outro, o interesse público oriundo do poder estatal de tributar e a sua necessidade de fiscalização e arrecadação cada vez mais eficaz e voraz, inclusive, por intermédio de institutos aplicados no direito comparado; face às disposições consagradas na Constituição da República Federativa do Brasil.
O presente estudo tratará, em princípio, de abordar os conceitos impressos no dispositivo em comento, destacando os pontos controvertidos e expondo o posicionamento doutrinário considerado mais adequado. Em seguida, a partir das informações expostas, tais conceitos serão relacionados ao planejamento tributário, tema que há muito vem sido posto em pauta, tanto nas mesas de discussão doutrinária, quanto na advocacia em geral e decisões prolatadas principalmente no âmbito administrativo. Assim, pretende-se verificar, através da melhor interpretação do parágrafo único em estudo, do ponto de vista material da regra, a partir da exploração das possíveis formas de interpretação a serem dadas ao polêmico dispositivo objeto do presente trabalho.
Capítulo I
1. Conceitos
1.1. Conceitos dos termos constantes do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional
Para uma melhor compreensão do tema em análise, serão explorados, neste capítulo, os termos-chave constantes do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, a fim de que seu alcance seja delineado a partir do que o legislador desejou ali imprimir.
1.1.1. Ato e negócio Jurídico
Diz o texto legal em discussão, que a autoridade administrativa poderá vir a desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados nas condições que determina. Cabe, portanto, compreender o que configura um ato ou negócio jurídico, para os fins do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.
Numa classificação mais estreita, são atos jurídicos aqueles eventos emanados de uma vontade, quer tenham intenção precípua de ocasionar efeitos jurídicos, quer não.
Os atos jurídicos podem ser divididos em lícitos e ilícitos. Afasta-se, de plano, a crítica de que o ato ilícito não seja jurídico. Considera-se, para efeitos de classificação, os atos ilícitos como parte da categoria de atos jurídicos, não considerando o sentido intrínseco da palavra, vez que o ilícito não pode ser jurídico.
Os atos jurídicos lícitos são os praticados pelo homem sem intenção direta de ocasionar efeitos jurídicos, tais como uma construção, uma fotografia, uma pintura. Todos esses atos podem ocasionar efeitos jurídicos, mas não têm, em si, tal intenção. Venosa(3) trata de classificar tais atos, conforme o Código Civil, como segue:
O presente Código Civil procurou ser mais técnico e trouxe a redação do art. 185: "Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior". Desse modo, o atual estatuto consolidou a compreensão doutrinária e manda que se aplique ao ato jurídico meramente lícito, no que for aplicável, a disciplina dos negócios jurídicos.
Quando existe por parte da pessoa a intenção especifica de gerar efeitos jurídicos ao adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, estamos diante do negócio jurídico. Venosa(4), sobre o assunto, comenta: "Nos atos meramente lícitos não encontramos o chamado instituto negocial. Neste último caso, o efeito jurídico poderá surgir como circunstância acidental do ato, circunstância esta que não foi, na maioria das vezes, sequer imaginada por seu autor em seu nascedouro".
No campo tributário, por exemplo, pode-se configurar ato jurídico a construção de certa filial de empresa em determinada cidade, a qual possui alíquota de ISS mais benéfica. A escolha da cidade em questão não teve por intenção provocar efeitos jurídicos, trata-se meramente de um ato que tem por fim viabilizar o desenvolvimento da atividade econômica da empresa em questão. No entanto, para fins tributários, os efeitos são determinantes, já que a empresa será onerada com alíquota menor de ISS em virtude de sua filial estar situada em cidade cuja lei beneficia os prestadores de serviço ali situados. Surge, com este exemplo, o seguinte questionamento: estaria dentro da hipótese do parágrafo único do art. 116 a empresa que constitui filial em cidade cujo ISS tem alíquota mais baixa, sendo que pratica suas atividades em outra cidade, na qual o referido imposto onera mais gravosamente os prestadores de serviço? É o que passará a ser explorado no capítulo "Discussão".
No que concerne ao negócio jurídico, é possível citar o seguinte exemplo: a constituição de uma sociedade em conta de participação. Tal prática vem a provocar efeitos jurídicos, visto que o sócio ostensivo passará a responder pela sociedade constituída. No entanto, atualmente, muitas empresas vêm utilizando tal instituto para montar estruturas mais benéficas a fim de economizar com o ICMS.
1.1.2. Simulação e dissimulação em face do Princípio da Legalidade Tributária
O Código Tributário Nacional, ao estabelecer a possibilidade de desconsideração de atos ou negócios jurídicos, restringe-a através do critério finalístico de forma que, para que um fato enquadre-se em tal hipótese, é essencial que o intuito, que o propósito daquele que praticou o ato ou negócio jurídico tenha sido o de: (i) dissimular a ocorrência do fato gerador; ou (ii) dissimular a ocorrência dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Desta feita, a fim de possibilitar a análise das duas hipóteses acima mencionadas, faz-se necessário interpretar o significado que a norma pretende dar ao verbo "dissimular", distinguindo-o da "simulação".
Simulação é, de acordo com Clóvis Bevilácqua(5), a declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado. Trata-se de um vício social do negócio jurídico.
Washington de Barros Monteiro(6) caracteriza a simulação pelo "intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um negócio jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o negócio realmente querido".
Maria Helena Diniz(7) classifica a dissimulação como sendo uma "simulação relativa". Trata-se, na verdade, de uma espécie de simulação, na qual coexistem dois contratos: um aparente (simulado) e um real (dissimulado).
A simulação resulta na nulidade do negócio simulado, enquanto que o negócio dissimulado, ou seja, aquele que era o desejado pelas partes, subsiste, conforme disposto no artigo 167 do Código Civil:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
§ 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.
Assim, em decorrência da própria natureza dos conceitos de direito civil, da exegese do dispositivo legal objeto do presente trabalho conclui-se que para que a autoridade fiscal possa desconsiderar ato ou negócio jurídico é essencial que fique provado que tal ato é uma simulação, passando então a considerar-se o ato ou negócio dissimulado, o qual corresponde ao próprio fato imponível ou, ainda, constitui aspecto da hipótese de incidência tributária que vincula a parte (sujeito passivo) de tal ato ou negócio à prestação de determinada obrigação.
Tal interpretação não poderia ser outra, sob pena de perda da validade de tal norma. Isso porque, nos dizeres de Paulo de Barros Carvalho(8), "'validade' é relação de pertinencialidade de uma norma 'n' com o sistema jurídico 'S'". Seria inadmissível autorizar a autoridade fiscal a desconsiderar atos e negócios jurídicos que não possuíssem qualquer tipo de vício, ou, ainda, sem a devida prova, pois isso iria de encontro com os princípios de direito civil.
Em decorrência disso, tais vícios devem estar devidamente caracterizados de acordo com o direito civil, assim como as formas de prova, já que a não observância de tais institutos feriria a lógica hierárquica de nosso sistema jurídico. Neste sentido, podemos aplicar analogicamente o artigo 110 do Código Tributário Nacional, in verbis:
A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Deve-se ainda ressaltar que a simples comprovação da nulidade do ato ou negócio jurídico não enseja, necessariamente, tributação. Para tanto, aquilo que estava dissimulado deve, conforme já dito, (i) corresponder a um fato imponível (também denominado pela doutrina de faro jurídico tributário); ou (ii) constituir aspecto da hipótese de incidência tributária que vincula a parte (sujeito passivo) de tal ato ou negócio à prestação de determinada obrigação de natureza tributária.
Tal constatação decorre do Princípio da Legalidade Tributária (ou Princípio da Estrita Legalidade, ou Princípio da Tipicidade Tributária), que é a aplicação direta do Princípio da Legalidade expresso na Constituição Federal ao nosso sistema tributário. Tal princípio consta do artigo 150 do CTN:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Só será, então, exigível algum tributo caso o ato ou negócio dissimulado enquadre-se em todos os elementos caracterizadores da regra-matriz de incidência descritos nas respectivas normas tributárias.
1.1.3. Fato gerador da obrigação tributária
Outro elemento presente no parágrafo único do art. 116 do CTN que merece uma análise mais cuidadosa é o fato gerador, o qual corresponde, segundo Amílcar Falcão(9), ao "conjunto de fatos ou o estado de fato, a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica de pagar um tributo determinado". Nessa definição, conforme o mesmo autor(10), estão mencionados como elementos relevantes para a caracterização do fato gerador, os seguintes:
a) a previsão em lei; b) a circunstância de constituir o fato gerador, para o Direito Tributário, um fato jurídico, na verdade um fato econômico de relevância jurídica; c) a circunstância de tratar-se de pressuposto de fato para o surgimento ou a instauração da obrigação ex lege de pagar um tributo determinado.
Do ponto de vista terminológico, cumpre observar que várias expressões têm sido empregadas como sinônimo de fato gerador, em geral não passando todas elas de simples tradução de termos consagrados na linguagem jurídica de outros países. Assim é que são eventualmente usadas as expressões: suporte fático, fato imponível, situação base ou pressuposto de fato do tributo, fato jurídico tributário etc. Nesse sentido, há uma tendência da doutrina em utilizar "fato gerador" como o termo mais adequado, o que não deixa de provocar discussões, uma vez que não é o fato gerador quem cria, ou gera a obrigação tributária, mas sim a lei. O fato gerador é apenas o pressuposto material que o legislador estabelece para que a relação obrigacional se instaure, ou seja, ele marca o momento, o pressuposto para que o vínculo jurídico legalmente previsto se inaugure. Contudo, pelo fato de que o momento da ocorrência do fato gerador é o mesmo em que se reputa instaurada a obrigação tributária, o termo em análise vem sendo considerado o mais apropriado.
Assim sendo, verifica-se que o parágrafo único do art. 116 determina a aplicação da legislação tributária ao fato gerador ocorrido. Nada diz quanto aos critérios a serem utilizados na identificação do próprio fato gerador. Caberá ao Fisco, nos termos do art. 142 do CTN, "verificar a ocorrência" utilizando os critérios de interpretação da lei e de interpretação dos fatos que sejam admissíveis no âmbito do Direito Tributário. O verdadeiro objeto do referido parágrafo único é assegurar que, se o fato gerador legalmente previsto efetivamente ocorreu, a circunstância de estar disfarçado ou travestido de outro fato (dissimulado) não afasta a incidência da lei tributária, cuja eficácia deverá ser assegurada, ainda que seja mediante a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos que o encobrem. Sobre o assunto, é oportuno observar os dizeres de Marco Aurélio Greco(11), quais sejam:
Saber se o fato gerador deve ser considerado ocorrido porque seus efeitos econômicos ocorreram, ou porque a forma jurídica é a prevista na lei, ou porque o perfil objetivo do ato praticado é o mesmo do previsto na lei etc. são questões aliadas a outras, que dizem respeito à interpretação da lei tributária, com repercussão no perfil que se pretenda dar à tipicidade nessa matéria, mas não são questões afetadas pelo dispositivo comentado.
Este limita-se a regular uma etapa posterior do processo de aplicação do direito. Ou seja, depois que vier a ser verificada a ocorrência do fato gerador - mediante a utilização dos critérios de interpretação da lei que forem pertinentes - a este fato gerador deverá ser aplicada a legislação tributária, ainda que seja necessário afastar os atos que o dissimulam.
Nota-se, então, que a possibilidade de exercício da competência da desconsideração do ato ou negócio jurídico dependerá da realidade material configurada, ou seja, do pressuposto de fato do surgimento dessa competência. Tal pressuposto consiste simplesmente em os atos ou negócios jurídicos terem sido praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador. É o que Greco(12) considera como o cerne da questão, já que, segundo ele, para que ocorra a hipótese de incidência da norma autorizadora da desconsideração, é indispensável que exista a definição do fato gerador, tipicamente descrito e que, materialmente, ele ocorra, embora dissimuladamente. Tal raciocínio aponta no sentido de que o parágrafo único do artigo 116 prestigia a legalidade e a tipicidade, pois elas cercam a qualificação dos fatos da vida para dar-lhes a natureza de fato gerador de tributo.
A norma em questão não autoriza a exigência de tributo em relação à hipótese que não configure fato gerador; não autoriza a exigência sem lei ou fora dos tipos que a lei pertinente tiver prescrito. Seu único objetivo é autorizar que seja afastada a "máscara" (a dissimulação), para permitir atingir o fato gerador que tenha efetivamente ocorrido. Se não ocorreu o fato gerador, não se materializou a hipótese de incidência do parágrafo único do artigo 116 e os atos ou negócios praticados pelo contribuinte não poderão ser desconsiderados pela autoridade administrativa.
A própria inserção do referido dispositivo deu-se de forma sistemática, uma vez que ocorreu no capítulo que regula a ocorrência do fato gerador do tributo, a qual se verifica desde o momento em que se constatem as circunstâncias materiais necessárias para que produza efeitos que normalmente lhe são próprios.
Por fim, não se pode deixar de observar que a analogia é inaplicável para fins de identificação da ocorrência do fato gerador, uma vez que admitiria a cobrança de tributo não previsto em lei. Trata-se de aplicar a lei tributária ao fato efetivamente ocorrido e assim comprovado pelo Fisco. Trata-se, única e exclusivamente, de afastar a cobertura que disfarça, dissimula o fato gerador ocorrido.
1.2. Conceitos relacionados ao tema
1. 2.1. Elisão e evasão fiscal
O parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional há muito vem sendo intitulado de "norma geral antielisão", ou seja, para muitos, o que aquele dispositivo pretende é abolir as práticas de elisão fiscal. Contudo, a problemática acerca da definição dos termos relacionados ao tema é, de certa forma, complexa, uma vez que a doutrina não é unânime na definição do significado do termo "elisão", assim como não há tal uniformidade na diferenciação para com o termo "evasão", ambos relacionados ao objeto do referido dispositivo.
De acordo com o que preceitua Ricardo Mariz de Oliveira (13),
A elisão fiscal vem sendo reconhecida como um direito da pessoa, reconhecimento este dado pela doutrina e pela jurisprudência de maneira praticamente unânime e uniforme (...). Esse direito vem sendo definido singelamente como o direito da pessoa procurar as maneiras menos onerosas, sob o ponto de vista tributário, para conduzir os seus negócios e os atos da sua vida particular. Em outras palavras, há um reconhecimento generalizado de que a pessoa não é obrigada a incorrer nas situações definidas como hipóteses de incidências tributárias, ou seja, não é obrigada a pagar mais tributos do que aqueles devidos em decorrência dos atos que praticar livremente.
De acordo com este raciocínio, portanto, não se pode considerar a elisão como uma conduta ilícita e punível, tendo em vista seu caráter de economia fiscal e não de fraude à lei. É o que também afirma Antonio Roberto Sampaio Doria(14), ao dizer que o termo elisão exprime "a ação tendente a evitar, minimizar ou adiar a ocorrência do fato gerador", ou seja, a elisão busca evitar a ocorrência do fato gerador, e não, ocultá-lo a fim de não pagar certo tributo ou minimizá-lo. Assim, na mesma corrente está Hermes Marcelo Huck(15) ao dizer o seguinte:
Elisão, elusão ou evasão lícita é a subtração ao tributo de manifestações de capacidade contributiva originalmente sujeitas a ele, mediante a utilização de atos lícitos, ainda que não congruentes com o objetivo da lei. Em essência, surge como uma forma jurídica alternativa, não prevista na lei tributária, de alcançar o mesmo resultado negocial originariamente previsto, sem o ônus do tributo.
No mesmo sentido está Gilberto de Ulhôa Canto(16), ressaltando o aspecto temporal do fato gerador na elisão fiscal:
O único critério cientificamente aceitável para se diferençar a elisão e a evasão é temporal. Se a conduta (ação ou omissão do agente) se verifica antes da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária de que se trate, a hipótese será de elisão, pois, sempre tendo-se como pressuposto que o contribuinte não viole nenhuma norma legal, ele não terá infringido direito algum do fisco ao tributo, uma vez que ainda não se corporificou o fato gerador.
No entanto, é tênue o limite que separa a elisão da evasão, no plano concreto. Para melhor compreender essa questão, cumpre verificar como o termo "evasão" é enquadrado atualmente no cenário tributário brasileiro. Muito sabiamente, Dória(17) trata do assunto, esclarecendo qual o alcance do termo evasão, comparado à elisão, tratado anteriormente. Assim preceitua o citado autor:
Na evasão ilícita, ou fraude em sentido genérico, atinge-se o resultado econômico colimado mas, a meio caminho de sua exteriorização efetiva ou após esta, o contribuinte se vale de artifício doloso para, distorcendo-a, produzir as conseqüências tributárias acima indicadas, afastando-se aquelas que, segundo a lei, tal realidade econômica, assim juridicamente vestida, deveria provocar. Na evasão legítima, que melhor soaria como elisão ou economia fiscal, o agente visa a certo resultado econômico mas, para elidir ou minorar a obrigação fiscal que lhe está legitimamente correlata, busca, por instrumentos sempre lícitos, outra forma de exteriorização daquele resultado dentro do feixe de alternativas válidas que a lei lhe ofereça, prevendo não raro, (...) regimes tributários diferentes, desde que diferentes as roupagens jurídicas que os revestem.
Em síntese, tanto na evasão como na elisão, idênticos são as intenções e os fins. Diferem os meios e o momento de sua efetivação.
Por fim, a Elusão consiste em uma zona de fronteira compreendida entre a elisão e a evasão fiscais. Trata-se do espaço divisor entre a conduta lícita praticada pelo particular para se esquivar do nascimento da obrigação tributária, mediante a utilização de negócios jurídicos lícitos, todavia, com a violação indireta da lei, contornando-a furtivamente (ilícito). Para Heleno Tôrres, elusão é, justamente, o limite imposto ao planejamento tributário.
Em suma, a figura da elusão é a conduta praticada pelo indivíduo, mediante atos ou negócios jurídicos previstos no ordenamento jurídico, contudo, desprovido de causa e com a intenção exclusiva de economia fiscal, mediante violação indireta da lei.
1.2.2. Limites do Planejamento Tributário
O tema do planejamento tributário é imensamente relevante da perspectiva da análise de normas antielisão. É importante esclarecer que planejamento e elisão são conceitos que se reportam à mesma realidade, diferindo apenas quanto ao referencial adotado e à tônica que atribuem a determinados elementos.
Cumpre, desde logo, mencionar três conjuntos de situações que ficarão fora do presente estudo por não configurarem nem planejamento nem elisão. São as condutas repelidas, as desejadas (induzidas) e as positivamente autorizadas pelo ordenamento. Esses três conjuntos de condutas, por se revestirem dessa qualificação jurídica mais nítida, ficam fora das hipóteses de planejamento e elisão.
O primeiro passo no sentido de desbastar a complexidade que cerca o tema é tentar indicar hipóteses que claramente pertencem a estes três conjuntos, sem esquecer que, no curso da exposição, podem surgir situações que se enquadrarão em um dos três conjuntos.
De imediato, é possível incluir no conjunto das condutas repelidas, as hipóteses que configurem ilícitos; no conjunto das condutas desejadas ou induzidas, aquelas que configurem utilização do tributo com finalidade extrafiscal e no conjunto das condutas positivamente autorizadas, as denominadas opções fiscais.
Greco(18), sobre o tema, diz o seguinte:
O primeiro grupo de situações que se encontra fora do objeto de estudo é formado pelas condutas sancionadas negativamente pelo ordenamento, ou seja, a prática de ilícitos.
Excluir do campo do planejamento os atos ilícitos é entendimento que penso ser unânime na doutrina brasileira. Desde os que defendem posições mais liberais, até os que examinam o planejamento a partir de ótica mais abrangente, passando pelos formalistas, todos - que eu saiba - sustentam que praticar ilícitos contamina o planejamento, descaracterizando-o.
Ou seja, toda operação que tenha por efeito minimizar a carga tributária mediante atos ilícitos está fora de nossa análise. Vale dizer, se alguém disser: aqui houve um planejamento com uso de uma falsidade, a rigor não está se referindo a um planejamento porque falsidade é ato ilícito (...). Todas as operações que se viabilizem através de atos ilícitos estão fora de nossa análise, pois não configuram planejamento.
O segundo conjunto das hipóteses e deve ser apartado do planejamento tributário compõe-se das situações em que o ordenamento positivo deseja certo resultado e veicula preceitos no sentido de viabilizar ou induzir condutas dos destinatários da norma. Este conjunto engloba duas principais categorias: a denominada extrafiscalidade pura e, particularmente, o engajamento do contribuinte em programas de incentivo.
Ainda citando Greco, sobre o assunto:
Em determinadas hipóteses, como por exemplo, no caso dos produtos sem muita felicidade denominados "supérfluos", ou produtos de baixo grau de essencialidade, a maior carga tributária imposta pelo ordenamento induz o contribuinte a fazer uma substituição material e deixar de consumir determinado produto. Promover a substituição material e passar a consumir outro produto é realizar planejamento tributário? Não. Esta hipótese está fora do campo do planejamento porque de certo modo a conduta que implica menor carga tributária apresenta uma intersecção com sentido de diretriz inerente ao ordenamento.
Por fim, cabe tratar da figura das opções fiscais, que são alternativas criadas pelo ordenamento, propositalmente formuladas e colocadas à disposição do contribuinte para que delas se utilize, conforme a sua conveniência. Elas estão fora do âmbito do planejamento, pois correspondem a escolhas que o ordenamento positivamente coloca à disposição do contribuinte, abrindo expressamente a possibilidade de escolha. O ordenamento indica dois caminhos, deixando ao contribuinte a escolha de seguir um ou outro, sendo que eventualmente um deles pode ser menos oneroso do que o outro. Não se pode deixar de concluir o tema sem a citação de Greco(19), que trata da hipótese da seguinte forma:
Exemplos de opção fiscal encontramos na tributação com base no lucro presumido, no regime de estimativa do ICMS, no desconto padrão previsto na declaração de Imposto sobre a Renda de pessoa física, etc. No caso das opções, se o contribuinte seguir a alternativa que implica menor carga tributária não estará fazendo planejamento.
Dessa forma, não se deve confundir os três institutos acima denotados com as hipóteses de planejamento e elisão, uma vez que os últimos não possuem caráter de ilicitude, extrafiscalidade e nem se baseiam em opções expressas no ordenamento jurídico.
2. Da aplicabilidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN
Conforme acima exposto, o parágrafo único do artigo 116 prevê a possibilidade de a autoridade fiscal, no exercício de sua função de fiscalização, "desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".
Da simples leitura do texto de tal dispositivo legal depreende-se que não é completa em si, que não possui todos os elementos necessários para sua aplicação. Sobre isso, Paulo de Barros Carvalho enuncia:
Pode acontecer que uma norma válida assuma o inteiro teor de sua vigência, mas por falta de outras regras regulamentadoras, de igual ou inferior hierarquia, não possa juridicizar o fato, inibindo-se a propagação de seus efeitos. Ou ainda, pensemos em normas que façam a previsão de ocorrências factuais possíveis, mas, tendo em vista dificuldades de ordem material, inexistam condições para que se configure em linguagem a incidência jurídica. Em ambas as hipóteses teremos uma norma válida dotada de vigência plena, porém impossibilitada de atuar. Chamemos a isso de 'ineficácia técnica'. Tércio Sampaio Ferraz Jr.(20) utiliza 'ineficácia sintática' no primeiro exemplo e 'ineficácia semântica' no segundo. As normas jurídicas são vigentes, os eventos do mundo social nelas descritos se realizam, contudo as regras não podem juridicizá-los e os efeitos prescritos também não se irradiam. Falta a essas normas "eficácia técnica".
Parece unânime a doutrina neste sentido. O tributaria Ives Gandra da Silva Martins(21) também afirma que "a eficácia da norma é futura e condicionada, não podendo, pois, dar suporte a qualquer ação fiscal para fazê-la efetiva, sem lei que crie os procedimentos pertinentes para tal fim".
Também Lais Vieira Cardoso(22) manifestou-se no sentido de que:
A aplicação pelo Fisco deste dispositivo requer a sua previsão por lei em sentido estrito, delimitando os seus aspectos como: o procedimento fiscal adotado para a descaracterização do ato ou negócio simulado e caracterização do dissimulado, a autoridade competente, os meios de prova e os demais elementos desta teoria do abuso de forma e de direito adotada, não podendo entrar em conflito com os princípios da garantia do contribuinte, com os conceitos adotados do direito privado ou com os critérios jurídicos de interpretação das normas e dos fatos imponíveis.
Com efeito, tal dispositivo não pode ser aplicado até que adquira sua eficácia técnica. O que necessita de análise são os princípios materiais que devem nortear a norma que o dará esta eficácia.
3. O Princípio da legalidade e os limites de atuação da autoridade administrativa
Além dos requisitos e restrições já examinados, o parágrafo único do art. 116 do CTN prevê, claramente, que a competência para desconsiderar será exercida "observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária". Com isto, é possível inferir que o CTN veiculou uma norma de eficácia limitada, na medida em que a plenitude da eficácia somente será obtida após a edição da lei ordinária dispondo sobre tais procedimentos. Isso significa que, enquanto não for devidamente editada a lei ordinária dispondo a respeito, faltará um elemento essencial à aplicabilidade do parágrafo examinado, sendo ilegal o ato administrativo fiscal que, nesse interregno, pretender nele apoiar-se.
Nesse diapasão, cumpre observar que tal cenário deve ser regido pelo princípio da legalidade, estando a autoridade administrativa submetida ao disposto na lei ordinária a ser criada.
O princípio da legalidade exige que a lei descreva rigorosamente os procedimentos a serem adotados pela Fazenda Pública para o lançamento do tributo, bem como as medidas a serem adotadas para o seu recolhimento e fiscalização. Reina, segundo Carrazza(23) o princípio da vinculabilidade da tributação ao nível infraconstitucional, ou seja, a Administração Pública, deve, obrigatoriamente, assim que verificado o fato imponível, aplicar as leis pertinentes ao caso concreto. A eventual omissão do legislador não pode ser "superada" pelo agente fiscal. Este deve limitar-se a aplicar a lei de ofício e não "corrigir" a lei, preenchendo suas eventuais lacunas.
Ainda citando Carrazza(24),
Os tipos tributários e tributários-penais não podem ser alargados por meio de manobras que costeiem os aludidos princípios (da tipicidade fechada e da estrita legalidade tributária). Os louváveis propósitos de aumentar a arrecadação e punir os infratores absolutamente não podem prevalecer sobre a segurança jurídica dos contribuintes. Em suma, em matéria tributária e tributário-penal, positivamente, é vedada a interpretação analógica in malam partem.
Também o agente fiscal, no exercício de suas funções, não pode converter-se em legislador, criando novas figuras típicas (penais ou tributárias) ou novas sanções, além das rigorosamente apontadas na lei.
Sintetizando estas idéias, os contribuintes possuem o direito de ver a atividade fazendária amarrada à lei, que, inclusive, deve conferir-lhes adequados meios de defesa de seus direitos constitucionais.
Enquanto lança, o Fisco tem o dever de ser imparcial, limitando-se a analisar o ato ou fato que vai oficialmente declarar subsumido à hipótese de incidência tributária. O referido doutrinador(25) continua,
A lei deve indicar, de modo rigoroso, a realidade a tributar, fazendo, assim, uma precisa, taxativa e exaustiva tipificação dos fatos necessários e suficientes ao nascimento do tributo. Não lhe é dado apontar conceitos indeterminados, fórmulas abertas ou cláusulas gerais, que permitam, de acordo com o subjetivismo do aplicador, a identificação de múltiplas situações tributáveis. Pelo contrário, este deve encontrar na lei tributária (nunca em normas de menor hierarquia) o fundamento de sua conduta e o próprio critério da decisão a tomar, diante do caso concreto. Em suma, a lei tributária deve ser certa, detalhando as figuras exacionais e o modo de apurar eventuais infrações que, em torno delas, possam ocorrer.
Desta forma, a autoridade administrativa deve obedecer aos limites previstos em lei para efetuar a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos que se enquadrarem nas hipóteses de dissimulação a serem consagradas por lei ordinária.
4. Do ônus da prova
Antes de buscar a quem incumbe a prova da existência do vício social do ato ou negócio jurídico, deve-se procurar aqueles que têm legitimidade para alegá-la.
Pelo fato de não haver, ainda, norma que regulamente tal situação especificamente no âmbito do direito tributário, a legitimidade e o ônus da prova serão analisados a seguir do ponto de vista do direito civil.
As nulidades podem ser alegadas por qualquer interessado, pelo Ministério Público, nos casos em que é prevista sua intervenção, podendo, ainda, serem pronunciadas pelo juiz ex officio. É o que dispõe o artigo 168 do Código Civil. Nos casos em que de tal simulação resultar em uma diminuição da arrecadação que seria devida ao Tesouro Público, será a pessoa competente para exigir tal tributo parte legítima para tal alegação.
Em relação ao ônus da prova, o Código de Processo Civil assim estabelece:
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Parte da doutrina(26) aceita a posição de que o CPC, nos artigos 333 e 335(27) "dá, implicitamente, ao magistrado o poder de valer-se dos indícios e presunções para pesquisar a simulação". Sílvio de Salvo Venosa exemplifica tais indícios de forma interessante ao nosso estudo: a falta de possibilidade financeira do adquirente, comprovada pela requisição de cópia de sua declaração do imposto de renda; o fato de o adquirente não ter declarado na relação de bens, para IR, a coisa adquirida; e a não-transferência do numerário mencionado no ato negocial nas contas bancárias dos participantes.
No âmbito do direito tributário, na hipótese de aplicação do dispositivo legal objeto do presente trabalho, poderia o fisco desconsiderar os atos e negócios jurídicos simulados sem utilizar-se do Poder Judiciário. Todavia, isso não o abstém do ônus da prova que lhe é incumbido pela regra do CPC, até porque tal lei é aplicada subsidiariamente ao processo tributário.
Não há que se falar, também, em inversão do ônus da prova, prevista no inciso II do parágrafo único do artigo 333 do CPC, uma vez que, conforme exposto por Paulo Celso B. Bonilha(28), o artigo 195 do CTN estipula a obrigatoriedade de o contribuinte conservar e manter livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais à disposição do Fisco até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram, pelo que se pressupõe o poder de o Fisco acessar e examinar tais elementos informativos que poderão servir de prova do vício social.
5. A Fraude à Lei no ordenamento jurídico
A palavra "fraude" pode assumir dois distintos significados, conforme o contexto em que se insere. Por vezes, o termo fraude é utilizado no sentido de conduta dolosa e ardilosa que corresponda a uma agressão à previsão contida da norma jurídica. Nesse sentido, o termo é, por exemplo, utilizado no art. 171 do Código Penal ao definir o crime de estelionato como a conduta de obter vantagem ilícita mediante meio fraudulento.
Neste contexto, o termo fraude supõe conduta que configure infração direta à legislação, no caso, penal e em que a ação fraudulenta é dirigida à pessoa da vítima. Fraude, neste sentido, é apenas modalidade de determinada conduta que implique inserção em dispositivo penal específico. Daí falar-se em "fraude em sentido penal" Mas a fraude penal não interessa ao presente estudo porque está no campo do ilícito que está fora do debate da elisão.
Assim sendo, cabe verificar o que Marco Aurélio Greco(29) diz sobre o assunto:
Na fraude à lei o contribuinte monta determinada estrutura negocial que se enquadre na norma de contorno para, desta forma, numa expressão coloquial, "driblar" a norma contornada. Com isto pretende fazer com que a situação concreta seja regulada pela norma de tributação (ou de tributação mais onerosa).
Neste caso, não estamos perante conduta ilícita. Não há violação direta à norma contornada. Ela vê sua aplicação frustrada pela conduta, mas não foi a rigor violada. Por isso, aliás, o artigo 166, VI do Código Civil de 2002 prevê claramente que a fraude à lei é hipótese de nulidade do negócio jurídico e não de ilicitude. A fraude à lei está colocada ao lado de negócio celebrado por pessoa absolutamente incapaz ou que tem objeto impossível.
A fraude à lei é um "drible jurídico" em que o agente se utiliza da norma de contorno (norma 2) para obter o mesmo resultado previsto no pressuposto de fato da incidência da norma contornada (norma 1) sem que seja por ela alcançado. Para o agente chegar ao resultado desejado, teria que passar pela norma 1 que é a norma de incidência ou a que prevê maior carga tributária; mas faz um contorno, dá um drible, vai buscar a norma 2, realiza seu pressuposto de fato e obtém o mesmo resultado que obteria pela norma 1.
Um exemplo bem esclarece o que estou expondo. Trata-se de um caso clássico julgado pelo Supremo Tribunal Federal na década de 60 num período em que era proibido importar automóveis como instrumento para proteger a indústria automobilística nascente àquela época. Esta é a norma 1 (= ser proibido importar automóvel). Portanto, não era possível o contribuinte chegar ao resultado desejado (ter um automóvel importado) em razão da existência da norma 1. Existia, porém, uma segunda norma que reconhecia haver no Brasil uma frota de veículos que necessitava de peças estrangeiras para continuar funcionando e essa frota não podia ser prejudicada. Por isso, existia uma segunda norma que permitia a importação de partes e peças. Certo contribuinte importou partes e peças (hipótese de incidência da norma 2) só que todas as partes e peças com as quais montou um automóvel no Brasil. Ele cometeu abuso? Não, porque não excedeu ao direito que a norma 2 contempla. Driblou a norma que proibia a importação de veículo pronto utilizando a norma que permitia a importação de partes e peças. Este caso foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como hipótese de fraude à lei tributária. O contribuinte infringiu algo, mas não a lei diretamente, tanto que sua conduta está coberta por uma lei (a das partes e peças).
Na fraude, à lei, portanto, o contribuinte está coberto pela previsão de uma lei que o protege. Deve-se olhar para as duas normas e não para os respectivos preceitos, bem como para as respectivas finalidades. Por este exame é possível concluir que houve um drible e o contribuinte agrediu o ordenamento porque em detrimento dele, manipulou uma regra. Através de manipulação de uma norma, chegou a um resultado que o conjunto não quer; então infringiu o ordenamento e não diretamente a lei.
No planejamento tributário ou na elisão, existem fatos certos (as condutas realizadas) e divergência quanto à sua qualificação jurídica, mas todo o processo formativo do ato ou negócio deve dar-se consistentemente e sem condutas que o alterem a meio curso. Assim, o contribuinte, a seus olhos, (i) não realiza o fato gerador do tributo ou (ii) realiza fato gerador que apresenta dimensão menos onerosa, mas não modifica as características de algo que já existia.
Capítulo II
1. Planejamento Tributário
O planejamento tributário consiste na atividade de estruturação de sistemas legais, de forma preventiva, realizado por pessoa física ou jurídica de maneira que melhor lhe atenda, com o escopo de gerar de forma transparente e lícita a economia tributária.
Segundo conceitua Láudio Camargo Fabretti:
O planejamento tributário se define como a atividade preventiva que estuda a priori os atos e negócios jurídicos que o agente econômico (empresa, instituição financeira, cooperativa, associação etc.) pretende realizar. Sua finalidade é obter a maior economia fiscal possível, reduzindo a carga tributária para o valor realmente devido por lei. (grifos no original) (30)
Diante das características atribuídas na definição de planejamento tributário, verificam-se alguns pontos fundamentais que constituem sua natureza jurídica:
(i) Prevenção - o estudo de viabilidade do planejamento tributário deve ser realizado antes da ocorrência do fato gerador, uma vez que, somente nesse período de tempo é possível eleger a opção legal menos onerosa, dentre todas as opções existentes;
(ii) Transparência - também considerada como característica fundamental, a transparência na condução do planejamento tributário é fator determinante para diferenciá-lo de fraude (ilicitude).
Assim, tem-se que o planejamento tributário decorrerá de análises do ordenamento jurídico e, conseqüentemente, da estruturação das opções legais que viabilizem, de forma preventiva, a adoção do procedimento fiscal menos oneroso ou ainda evitar a incidência do tributo.
Diante do entendimento majoritário da doutrina entende-se que a figura do planejamento tributário é também chamado de ato elisivo, conhecido pela figura da elisão fiscal.
Segundo o ilustre professor Ivo Cesar Barreto de Carvalho o termo elisão significa o ato ou efeito de suprimir ou eliminar um outro ato ou conduta (tendente a pagar tributos). Ensina que "a relação tributária ainda não se encontra instaurada, todavia o particular pratica atos de maneira a eliminar ou suprimir a possibilidade de incidência da norma tributária que satisfaça aquela conduta típica." (31)
O tema planejamento tributário é de imensa importância na análise de normas como o parágrafo único do art. 116 do CTN. Nesse toar cumpre salientar que planejamento e elisão são conceitos que têm por base a mesma realidade, apresentando diferenças quanto ao referencial adotado, bem como à tônica atribuída a determinados elementos.
Nas palavras do professor Marco Aurélio Greco:
Quando se menciona "planejamento", o foco de preocupação é a conduta de alguém (em geral, o contribuinte); por isso, a análise desta figura dá maior relevo para as qualidades do que se reveste tal conduta, bem como para os elementos: liberdade contratual, licitude da conduta, momento em que ela ocorre, outras qualidades de que se revista, etc.
Quando se menciona "elisão", o foco de análise é o efeito da conduta em relação à incidência e cobrança do tributo; por isso, sua análise envolve debate sobre os temas da capacidade contributiva, da isonomia, etc. (32)
Conforme os ensinamentos de Gilberto Luiz do Amaral, a operacionalização da elisão fiscal ou planejamento tributário pode se dar:
a) No âmbito da própria empresa, através de medidas gerenciais que possibilitem a não-ocorrência do fato gerador do tributo, que diminua o montante devido ou que adie o seu vencimento. Exemplo: para possibilitar o adiamento do tributo na prestação de serviços, o contrato deve estabelecer o momento da realização da receita.
b) No âmbito de esfera administrativa que arrecada o tributo, buscando a utilização dos meios previstos em lei que lhe garantam uma diminuição legal do ônus tributário. Exemplo: para possibilitar o enquadramento de um produto numa alíquota menor de IPI, deve a empresa adequá-lo tecnicamente e requerer a nova classificação junto à Receita Federal.
c) No âmbito do Poder Judiciário, através da adoção de medidas judiciais, com o fim de suspender o pagamento (adiamento), diminuição da base de cálculo ou alíquota e contestação quanto à legalidade da cobrança. Exemplo: como a ânsia do poder público em arrecadar é enorme e urgente, nem sempre o legislador toma as cautelas devidas, instituindo ou majorando exações inconstitucionais e ilegais.(33)
É dever do bom administrador adotar medidas menos onerosas na condução de seus negócios, portanto, tem no planejamento tributário uma ferramenta perfeitamente lícita, a qual possibilitará percorrer o caminho menos oneroso. Sua prática em nada se assemelha aos procedimentos ligados à simulação tendente à sonegação de tributos (evasão fiscal), mas tão-somente a reduzir, postergar ou evitar a incidência tributária (elisão fiscal). O Poder Público não pode tolher uma prerrogativa válida, adotada por uma pessoa física ou jurídica, que optou em não caminhar pelas situações legalmente previstas na legislação, portanto, permanecendo-se fora das hipóteses de incidência de um determinado tributo.
Importante destacar o entendimento do ilustre professor Hermes Marcelo Huck, quanto à questão da aplicação do planejamento tributário, devendo este ficar limitado aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária. Segundo o professor o indivíduo deve planejar seus negócios dentro dos limites da lei, de forma a pagar menos impostos. Não obstante, a liberdade para referido planejamento não pode ser levada ao extremo de forma a ocasionar a simulação e o abuso de direito. Nesse sentido, dispõe que a elisão abusiva deve ser coibida, uma vez que, a utilização de formas jurídicas com a finalidade única de fugir da tributação ofende a um sistema criado sobre as bases constitucionais da capacidade contributiva e da isonomia. Portanto, ao estabelecer uma relação jurídica sem qualquer objetivo econômico, sendo sua única finalidade de natureza tributária, então, não deverá ser considerada como um comportamento lícito, pois, seria o mesmo que ignorar o fato econômico da racionalidade da norma tributária.
Nesse toar, faz uma breve análise do business purpose test do direito norte-americano, que aceita como lícita a economia fiscal quando decorrente de uma construção jurídica que, além da economia de imposto, também demonstre um objetivo negocial explícito.(34)
Acerca do ponto, Rubens Gomes de Sousa a respeito do planejamento tributário e da evasão e elisão fiscais observa uma premissa inquestionável com escopo de distinguir a economia lícita do tributo da evasão fiscal. A fim de se aclarar as dúvidas, afirma que basta questionar se os atos ou negócios praticados evitaram a ocorrência do fato gerador ou ocultaram o fato gerador ocorrido. Na primeira hipótese verifica-se a economia fiscal lícita, contudo, no segundo caso estaria configurada a evasão fiscal, portanto, uma economia fiscal ilícita.
O planejamento tributário tem fundamento constitucional no enunciado do preâmbulo da Carta da República de 1988, que, ao instituir um Estado Democrático, destinou-se a assegurar, entre outros, a liberdade, a segurança e o desenvolvimento. O planejamento tributário é permitido constitucionalmente, mediante outras garantias elencadas na Constituição Federal, basicamente no princípio da legalidade geral (art. 5º, II) e da legalidade tributária estrita (art. 150, I).
Assim, temos que a celebração de um negócio jurídico realizado por um particular, de maneira que não sofra tributação ou que seja tributado de forma menos onerosa não constitui qualquer ilícito, uma vez que, o contribuinte atuou dentro do campo da licitude, na qual foi escolhida a via menos onerosa.
Por fim, cabe destacar que um aspecto relevante do estudo do planejamento tributário é que a sua delimitação conceitual, ou seja, saber de antemão o que é planejamento tributário válido e o que é planejamento tributário inválido, traz segurança jurídica. Do contrário, a incerteza quanto à legalidade de uma atitude do contribuinte o prejudica, de forma que as relações da vida privada seriam afetadas.
Capítulo III
1. Discussão
Partindo para uma análise da natureza jurídica do referido preceito legal, observam-se os ensinamentos de James Marins, o qual nos apresenta três espécies de regras jurídicas:
i) Regra formal ou de estrutura (ou regra de competência administrativa): faculta-se à autoridade administrativa desconsiderar atos ou negócios jurídicos;
ii) Regra material: o contribuinte que praticar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou da natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária poderá sofrer a desconsideração desses atos;
iii) Regra de aplicabilidade normativa (regra de instituição e regulamentação): somente com a observância dos procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária poderá ser promovida a desconsideração pela autoridade administrativa dos atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte.(35)
Conforme a tese do referido jurista, citado na obra do professor Ivo Cesar Barreto de Carvalho - Elisão Tributária no Ordenamento Jurídico Brasileiro, afirma que o normativo em análise apresenta as três espécies simultaneamente: regras formal, material e de aplicabilidade normativa(36).
Nesse toar, a regra de competência formal está adstrita à primeira parte da norma, ao delimitar a faculdade que a autoridade administrativa tem de desconsiderar atos ou negócios jurídicos. Tal disposição amplia a competência da Administração Fazendária, antes restrita à ação fiscalizatória e declaratória.
A regra material diz respeito à descrição da conduta ao contribuinte, prevendo hipóteses de comportamento do particular às quais atribui implicações administrativas e materiais de natureza tributária.
No tocante à aplicabilidade normativa, verifica-se apenas uma regra de observância referente ao estabelecimento em lei ordinária. Trata-se de uma regra de regulamentação da norma em comento, contudo, não remete às garantias processuais inerentes ao devido processo legal (contraditório e ampla defesa), logo, não se trata de uma regra processual.
Após comentários acerca da natureza jurídica do parágrafo único do artigo 116 do CTN, torna-se necessário entender o conteúdo e o objetivo da norma em análise. De início, nos deparamos com diferentes opiniões doutrinárias, sendo citadas algumas delas segundo sua importância.
Uma parte da doutrina firmou posicionamento no sentido de que a LC nº 104/01 não consagrou no texto do Código Tributário Nacional uma norma geral antielisão, mas uma norma geral antievasão. Tal posicionamento baseia-se no fato de evitar a evasão ou sonegação fiscal, mediante atos dolosos, fraudulentos ou simulados praticados pelo contribuinte.
Tal posicionamento fica evidente pela própria exposição de motivos que acompanhou o Projeto de Lei Complementar nº 77/99, que se tornou a LC nº 104/01, subscrito pelo Ministro da Fazenda, abaixo reproduzido:
VI - A inclusão do parágrafo único do art. 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que me permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.(37)
Assim, é possível concluir que a suposta dissimulação do fato gerador ou dos elementos da obrigação tributária seria o ato praticado pelo contribuinte com abuso de forma ou de direito.
Não obstante às disposições realizadas, certo é que o intuito do legislador foi combater os efeitos danosos causados ao erário, decorrentes dos planejamentos tributários praticados pelos contribuintes. Nesse sentido, questiona-se se o referido instrumento jurídico está apto a cumprir a função para a qual foi designado.
Outro ponto de atenção relativo ao normativo em análise trata-se da identificação e alcance da expressão autoridade administrativa, bem como a forma do procedimento de desconsideração do negócio jurídico.
No primeiro caso (autoridade administrativa) é possível verificar que a autoridade administrativa está investida do poder-dever de fiscalizar as situações ocorridas no âmbito dos contribuintes. Todavia, ampliar o campo de atuação da Administração Pública de forma que venha a efetuar ou rever o lançamento de ofício, abrangendo a prerrogativa de desconsiderar atos ou negócios jurídicos supostamente dissimulados, realmente, trata-se de uma situação delicada.
Conforme anteriormente comentado, o alargamento dos poderes de atuação da Administração Pública, através de norma geral antielisiva, colide com os princípios da legalidade, da tipicidade, da separação dos poderes, pois autoriza o agente fiscal a deixar de aplicar a lei ao fato a que se destina e a escolher dispositivo legal que resulte mais oneroso ao contribuinte. Ademais, a norma que atribua ao fisco competência para desqualificar as condutas praticadas pelo particular, com o escopo de incluí-lo no status de contribuinte de determinado tributo fere frontalmente o conceito de Estado Democrático de Direito.
Mais especificamente sobre o termo desconsideração, configura-se inviável conceber tamanho poder ao fisco, mesmo que este seja terceiro interessado na relação jurídica entre os contraentes, em eventual negócio viciado por simulação, por exemplo. É inegável o interesse do fisco na anulação do negócio jurídico simulado, contudo, o procedimento expressamente previsto pelo ordenamento jurídico requer que tal análise passe pelo crivo do Poder Judiciário.
A desconsideração do negócio jurídico simulado dever ser fundamentada. Nesse sentido, destaca-se que o dever de fundamentação é pressuposto dos princípios da ampla defesa e do contraditório e do direito de acesso ao poder judiciário. Assim, a Constituição Federal reconheceu a necessidade de fundamentação das decisões administrativas e judiciais (inciso LV do artigo 5º da CF/88), a fim de garantir os referidos princípios constitucionais.
Partindo para o vocábulo dissimulação, verifica-se que seu significado é ocultar ou encobrir com astúcia, disfarçar, não dar a perceber, fingir, simular, atenuar o efeito de, tornar pouco sensível ou notável, proceder com fingimento, hipocrisia, ocultar-se, esconder-se.(38) Em linguagem jurídica, a dissimulação ocorre quando alguém disfarça, artificiosamente, a vontade real.
O negócio jurídico realizado pelo particular cuja finalidade é dissimular a ocorrência de quaisquer dos elementos constitutivos da hipótese de incidência tributária é nulo, conforme artigo 167 do Novo Código Civil Brasileiro - Lei nº 10.406/02. A simulação é definida no § 1º do citado dispositivo legal:
§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Nota-se que o ato simulado é nulo em decorrência de dispositivo legal, e não decorrente da vontade de uma autoridade administrativa. Assim, mesmo que um ato lícito praticado mediante negócio indireto não se equipare a um negócio jurídico simulado, a aplicação da norma geral antielisiva ou antievasiva referente ao parágrafo único do artigo 116 do CTN consiste num exagero de poderes concedidos à Administração, não permitidos no ordenamento jurídico brasileiro.
No mesmo sentido dos comentários supracitados, a adoção da teoria do abuso de direito, justificada tanto na falta de propósito negocial como no abuso de forma, também seria conferir prerrogativas exacerbadas à Administração Pública.
Observa-se ainda que a dissimulação constante do parágrafo único do artigo 116 do CTN ocorre quando o contribuinte encobre um negócio por ele praticado, sendo este um fato jurídico tributário. Assim, escondendo de forma artificiosa um ato que incorreria, normalmente, na hipótese de incidência de um determinado tributo, o contribuinte estaria incorrendo em um ato dissimulador, logo, dentro do campo da ilicitude. Portanto, entendendo os conceitos da maneira acima comentada é dizer que a elisão fiscal é permitida pela legislação, e a ela não se aplica o parágrafo único do artigo 116 do CTN, conforme preleciona a professora Maria Rita Ferragut.(39)
Ademais, o parágrafo único do artigo 116 do CTN é incompatível com o parágrafo 1º do artigo 108 do mesmo diploma, o qual dispõe acerca da impossibilidade de exigência de tributo não previsto em lei com emprego da analogia. Portanto, em que pese a intenção do legislador em criar uma norma geral antielisão, imprescindível a revogação do referido parágrafo 1º do artigo 108 do CTN.
Conclusão
O controvertido parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional é objeto de farta discussão por parte da doutrina. Isso porque tal dispositivo é extremamente simplista e genérico, além de estar inserido em um contexto que trata da formação da obrigação tributária - o capítulo do CTN, que diz respeito ao fato gerador -, o que sugere uma aplicação notadamente ampla àquela disposição legal. Diante deste panorama, torna-se extremamente importante a consolidação de um entendimento acerca dos limites da aplicação do referido parágrafo único, uma vez que sua redação dá margem a interpretações que têm servido de embasamento para muitas autuações arbitrárias por parte das autoridades competentes.
Buscando colaborar com a consecução de tal objetivo, o presente trabalho ateve-se à análise do real sentido da norma, que estivesse de acordo com o ordenamento jurídico-tributário brasileiro, notadamente com os princípios constitucionais, possibilitando depreender os aspectos que deverão ser abordados na lei que a regulamentará, a qual se concluiu dever ser da espécie ordinária, a fim de estabelecer os critérios materiais que deverão ser observados pelo legislador em sua elaboração. A linha de raciocínio elaborada partiu da premissa de que referida norma trazida pela Lei Complementar nº 104/01, ao contrário do que parte da doutrina entende, não poderia ser entendida como uma norma geral antielisiva, tendo em vista que tal exegese está em desacordo com o princípio da legalidade, do qual decorre a taxatividade da tributação. Para que tal sentido lhe fosse atribuído, o veículo normativo teria que ser de emenda constitucional e, ainda assim, caberia discussão acerca da constitucionalidade de tal emenda. Referida regra, então, deve ser compreendida como uma norma anti-simulação, conclusão esta obtida com base em uma interpretação sistemática do dispositivo. O uso do termo "dissimulação" ratifica este entendimento.
Com base nesta conclusão, que serviu de premissa para o desenvolvimento da presente pesquisa, analisaram-se os aspectos que deverão, necessariamente, constar da lei ordinária para que a tão discutida norma anti-simulação seja aplicada pelas autoridades fiscais. Em primeiro lugar, observou-se que o ônus da prova do fato constitutivo do direito de tributar pertence ao Fisco, uma vez que não existe direito de tributar antes que seja demonstrada a ocorrência do respectivo fato gerador. E, enquanto não restar claro que o ato ou negócio jurídico supostamente tributável realmente ocorreu, em detrimento daquele que teria sido simulado pelo contribuinte, isto não se concretizará. A prova da simulação deverá ser feita por todos os meios admitidos em lei, de acordo com a lei civil. Além disso, para que o Fisco possa gozar do privilégio de fazê-lo por meio de processo administrativo, em vez de seguir os procedimentos da ação prevista na lei civil, proposta no judiciário (cuja morosidade reduziria a eficácia do órgão arrecadador), é imperioso que exista, ainda, prova inequívoca de que a finalidade do ato ou negócio jurídico foi dissimular a ocorrência do fato gerador, única hipótese em que a situação fática prevista no parágrafo único do art. 116 se materializaria. Em segundo lugar, e isso decorre da própria lógica, exige-se que o ato simulado seja um fato gerador de obrigação tributária. Caso contrário, de nada adiantaria provar-se que ocorreu uma simulação. Não existiria fato típico tributável. Por fim, faz-se necessário deixar consignado que a alteração da Lei das Sociedades Anônimas trazida pela Lei nº 11.638/07 de forma alguma possibilitaria nova discussão acerca de entender a norma em estudo como antielisiva, primeiro pelo fato de tratar-se de lei ordinária, também subordinada à Constituição Federal, segundo por tal lei tratar da contabilidade que, no entendimento de Alberto Xavier, não cria coisa alguma, muito menos direito. Assim, impossível se faz cogitar que uma norma contábil possa causar reflexos tributários próprios de uma norma geral antielisiva. Caso isso fosse feito, esta norma contábil também estaria contrariando a Lei Maior.
Com base em todo o exposto, infere-se em apertada síntese que: (i) o parágrafo único do art. 116 do CTN consiste em uma norma anti-simulação; (ii) para que seja aplicado, deverá ser regulamentado por lei ordinária; e (iii) referida lei ordinária deverá basear-se nos seguintes critérios materiais: o ônus da prova pertence ao Fisco; só poderá ocorrer a desconsideração na hipótese de existir prova do intuito de dissimular, além da prova da simulação; e só haverá tributação caso o ato dissimulado constitua um fato gerador.
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Notas
(1) GIORGETTI, A. L'Evasione Tributaria. Turim, 1964. p. 3. apud DÓRIA, A. R. S. Elisão e Evasão Fiscal. 2. Ed. São Paulo: Bushatsky, 1977. p. 33.
(2) XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001.
(3) VENOSA. S. de S. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. (coleção Direito Civil; v. 1). p. 338.
(4) VENOSA. S. de S. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. (coleção Direito Civil; v. 1). P. 339.
(5) BEVILÁCQUA. C. Comentários ao Código Civil., v. 1, p. 380. apud DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. v. 1: teoria geral do direito civil, 23. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10/1/2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 380.
(6) DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. teoria geral do direito civil, 23. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10/1/2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 481.
(7) ______.p. 538.
(8) BARROS CARVALHO, P. de. Direito Tributário: fundamentos jurídicos de incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 54.
(9) FALCÃO, A. de A. Fato gerador da obrigação tributária. 6. ed. Revista e atualizada pelo Prof. Flávio Bauer Novelli; anteriores anotações de atualização, pelo Prof. Geraldo Ataliba; prefácio de Aliomar Baleeiro; apresentação de Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 3.
(10) ______.
(11) GRECO, M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 412.
(12) GRECO, M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 408.
(13) MARIZ DE OLIVEIRA, R. A Elisão Fiscal ante a Lei Complementar nº 104. In: ROCHA, V. de O. O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 247.
(14) DÓRIA, A. R. S. Elisão e Evasão Fiscal. 2. Ed. São Paulo: Bushatsky, 1977. p. 43.
(15) HUCK, H.M. Evasão e Elisão: rotas nacionais e internacionais. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 326/327. apud PAULSEN, L. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 9. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado - ESMAFE, 2007.
(16) ULHÔA CANTO, G. de. Evasão e elisão fiscais, um tema atual. In. RDT, nº 63. São Paulo: Ed. Malheiros, 1994. P. 188.
(17) DÓRIA, A. R. S. Elisão e Evasão Fiscal. 2. Ed. São Paulo: Bushatsky, 1977. p. 39.
(18) GRECO, M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 78.
(19) GRECO, M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 92
(20) SAMPAIO FERRAZ JR., T. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1968. apud BARROS CARVALHO, P. de. Curso de Direito Tributário. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
(21) MARTINS, I. G. da S. Norma anti-elisão tributária e o princípio da legalidade, à luz da segurança jurídica. RDDT 119/120, ago/2005. In PAULSEN, L. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 7. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2005. P. 949.
(22) CARDOSO, L. V. As doutrinas de prevalência da substância sobre a forma diante do par. ún. do art. 116 do CTN. RTFP 54/98, fev/2004. In PAULSEN, L. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 7. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2005. P. 949.
(23) CARRAZA, R. A. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 234.
(24) ______.
(25) CARRAZA, R. A. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 235.
(26) DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. v. 1: teoria geral do direito civil, 23. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10/1/2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2006.p. 490.
(27) "Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum sub-ministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial".
(28) BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. Da prova no processo administrativo tributário. São Paulo: LTr, 1992. p. 87.
(29) GRECO, M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 219.
(30) FABRETTI, L. C. Normas antielisão. Disponível em: http://www.tributarista.org.br/content/estudos/anti-elisao.htm
(31) CARVALHO, I. C. B. de. Elisão Tributária no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: MP Ed., 2007.
(32) GRECO. M. A. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 74.
(33) AMARAL, G. L. do. A nova ótica do planejamento tributário empresarial. Elisão Tributária no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: MP Ed., 2007.. Disponível em: HTTP://www.tributarista.org.br/content/estudos/nova-otica.html
(34) HUCK, Hermes Marcelo. In Elisão Tributária no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: MP Ed., 2007. p. 328-31.
(35) MARINS, J. Elisão tributária e sua regulação. São Paulo: Dialética, 2002.
(36) CARVALHO, I. C. B. de. Elisão Tributária no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: MP Ed., 2007.
(37) TROIANELLI, G. L. Comentários aos novos dispositivos do CTN: a LC 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 27.
(38) FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da Língua Portuguesa. Positivo Editora: São Paulo, 2008. p. 599.
(39) FERRAGUT, M. R. Evasão fiscal: o parágrafo único do art. 116 do CTN e os limites de sua aplicação. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n. 67, 2001. p. 117-24.
Adriano Keith Yjichi Haga
Advogado especializado da Consultoria Tributária Negócios do Itaú-Unibanco, São Paulo/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET
- Publicado pela FISCOSoft em 23/10/20
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