sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Empresa de ônibus responde por danos a ciclista não passageiro

Responsabilidade Civil Objetiva e Terceiro Não-Usuário do Serviço

Trata-se de recurso extraordinário interposto em face de acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, que concluiu pela responsabilidade civil objetiva de empresa privada prestadora de serviço público em relação a terceiro não-usuário do serviço.

Na origem, cuida-se de ação de reparação de danos morais e materiais, ajuizada por Justa Servin de Franco e outra, contra a Viação São Francisco, em razão de acidente ocorrido em 14/11/1998, que vitimou o seu companheiro, no município de Campo Grande/MS.

O acórdão recorrido recebeu a seguinte ementa:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE ENVOLVENDO CICLISTA E ÔNIBUS DE EMPRESA DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. DANO MATERIAL NÃO COMPROVADO. DANO MORAL INDEPENDENTE DE PROVA. RECURSO PROVIDO PARA JULGAR PROCEDENTES EM PARTE OS PEDIDOS INICIAIS.

1. À míngua de prova de que o acidente envolvendo ciclista e ônibus de empresa de transporte coletivo, com morte do ciclista, deu-se por caso fortuito, força maior ou por culpa exclusiva da vítima, a empresa responderá objetivamente pelo dano, seja por se tratar de concessionária de serviço público, seja em virtude do risco inerente à sua atividade.

2. Inexistindo prova de que a vítima fatal de acidente de trânsito desenvolvia atividade remunerada, tem-se por improcedente o pedido de pensão alimentícia formulado pela companheira e pela filha.

3. O sofrimento decorrente do sinistro que acarretou a morte do companheiro e pai independe de qualquer atividade probatória e permite condenar a empresa de transporte coletivo a indenizar a família pela dor causada”.

Neste RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, sustentou-se ofensa aos arts. 37, § 6º, e 93, IX, da mesma Carta.

Alega a recorrente, em síntese, que a teoria da responsabilidade objetiva não se aplica ao caso, pois a pessoa que faleceu em razão do acidente não era usuária do serviço de transporte coletivo (fls. 322-323).

Nas contrarrazões, encartadas às fls. 362-367, sustenta-se a responsabilidade objetiva da recorrente, bem como a inocorrência, na espécie, de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.

Em 23/10/2008, o Supremo Tribunal Federal considerou existente a repercussão geral da questão constitucional debatida nos autos. Transcrevo a ementa da decisão:

“CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM RELAÇÃO A TERCEIROS NÃO-USUÁRIOS DO SERVIÇO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA” (fl. 410).

À ocasião, manifestei-me pela existência de repercussão geral, observando que a questão foi submetida ao Plenário desta Corte por meio do RE 459.749/PE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, cujo julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Min. Eros Grau. Entretanto, ele não foi concluído em razão da superveniência de acordo entre as partes (fl. 406).

Deixei de ouvir o Ministério Público Federal, porquanto, em inúmeros outros casos que versavam sobre a mesma questão constitucional, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo não conhecimento do recurso, em razão da inviabilidade do exame de provas na via extraordinária. Nesse sentido, cito, dentre outros, os seguintes processos: RE 565.758/DF, de minha relatoria, RE 459.749/PE, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

No entanto, instado a pronunciar-se, na Sessão Plenária de 26/8/2009, o Procurador-Geral da República manifestou-se, oralmente, pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

Voto: Senhor Presidente, a questão constitucional discutida nestes autos, consiste em aquilatar-se o alcance do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, no que tange à extensão da teoria da responsabilidade objetiva a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público, relativamente a terceiro que não ostenta a condição de usuário do serviço por ela prestado.

Como se sabe, a obrigação do Estado de reparar os danos causados a terceiros em razão de atividades praticadas por seus agentes foi, por longo tempo, recusada em nome da iníqua “teoria da irresponsabilidade” da Administração Pública, fundada em princípios herdados do regime absolutista (the king can do no wrong; le roi ne peut mal faire), que representavam verdadeira negação do direito pelo próprio Estado, cuja principal atribuição é, justamente, a de guardá-lo e aplicá-lo de forma isonômica e adequada.

Ao escrever sobre a responsabilidade do Poder Público, nos idos 1927, Paul Duez já sustentava a obrigação estatal de reparar, como regra, concluindo que “aujourd´hui, on peut dire que la responsabilité est la règle, l´irresponsabilité, la exception”.

Examinando a evolução da responsabilidade extracontratual do Estado, Maria Sylvia Zanella de Pietro, muito bem sintetizou a questão ao assinalar que:

“O tema da responsabilidade civil do Estado tem recebido tratamento diverso no tempo e no espaço; inúmeras teorias têm sido elaboradas, inexistindo dentro de um mesmo direito uniformidade de regime jurídico que abranja todas as hipóteses. Em alguns sistemas, como o anglo-saxão, prevalecem os princípios do direito privado; em outros como o europeu-continental, adota-se o regime publicístico. A regra adotada por muito tempo foi a de irresponsabilidade; caminhou-se, depois, para a responsabilidade subjetiva, vinculada à culpa, ainda hoje aceita em várias hipóteses; evoluiu-se, posteriormente, para a teoria da responsabilidade objetiva, aplicável, no entanto, diante de requisitos variáveis de um sistema para outro, de acordo com normas impostas pelo direito positivo”.

No Brasil, a teoria da irresponsabilidade jamais foi acolhida, seja no âmbito doutrinário, seja no jurisprudencial. Com o advento do Código Civil de 1916, adotou-se, majoritariamente, a teoria civilista da responsabilidade subjetiva, com base na redação um tanto quanto ambígua do art. 15 do referido diploma normativo, que conduzia à idéia da culpa.

As Constituições de 1934 e 1937 acolheram o princípio da responsabilidade civil solidária entre o Estado e os seus funcionários, por danos causados a terceiros, ressalvado o direito de regresso.

Com a Constituição de 1946, o Brasil assumiu uma postura mais publicista com relação à responsabilidade do Estado, desenvolvendo-se aqui a “teoria do risco administrativo”, segundo a qual não se exige a demonstração de culpa para que se possa responsabilizar objetivamente o Poder Público por prejuízo causado a terceiro, mas, apenas, a constatação do nexo de causalidade entre o dano e a ação administrativa. Adotou ela, então, a “teoria do risco”, que tem por substrato a idéia de que toda a atividade estatal envolve a possibilidade de causar dano a alguém.

Assim, assentava o art. 194 da referida Carta que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”, admitida a ação regressiva contra funcionários que tivessem agido com culpa.

A Constituição de 1967 manteve a regra em seu art. 105, acrescentando que a ação de regresso seria cabível em caso de dolo ou culpa. Idêntica redação foi adotada pela EC 1/1969, no art. 107.

Em 1988, com o advento da nova Constituição, estabeleceu-se no art. 37, § 6º, o seguinte:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

A responsabilidade civil, tanto do Estado, quanto da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, portanto, passou a ser objetiva em relação a terceiros, como se depreende da redação do referido dispositivo constitucional.

É bem de ver, contudo, que a força maior e a culpa exclusiva da vítima podem figurar como excludentes de responsabilidade do Estado, exatamente porque o nexo causal entre a atividade administrativa e o dano dela resultante não fica evidenciado.

Resta saber - e é exatamente isso que se discute no presente RE - se a locução “terceiros”, abrigada no art. 37, § 6º, da Constituição vigente, alcança também aquela pessoa que não se utiliza do serviço público.

A matéria ora submetida ao exame do Plenário, convém recordar, não é nova nesta Suprema Corte. Em caso semelhante, nos autos do RE 262.651/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, decidido pela Segunda Turma, em 16/11/2004, prevaleceu o entendimento de que “a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuário”. À ocasião, o Min. Joaquim Barbosa foi voto vencido na companhia do Min. Celso de Mello.

Noutra ocasião, no julgamento do RE 459.749/PE, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa, o qual foi suspenso em virtude de pedido de vista do Min. Eros Grau, e não concluído em razão da superveniência de acordo entre as partes, o Relator reiterou o entendimento de que a teoria da responsabilidade objetiva é aplicável às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, mesmo para os terceiros não-usuários do serviço, com fulcro nos seguintes fundamentos:

“1) Tendo a Constituição brasileira optado por um sistema de responsabilidade objetiva baseado na teoria do risco, mais favorável às vítimas do que às pessoas públicas ou privadas concessionárias de serviço público, no qual a simples demonstração do nexo causal entre a conduta do agente público e o dano sofrido pelo administrado é suficiente para desencadear a obrigação do Estado de indenizar o particular que sofre o dano, deve a sociedade como um todo compartilhar os prejuízos decorrentes dos riscos inerentes à atividade administrativa, em face do princípio da isonomia de todos perante os encargos públicos;

2) Parece-me imprópria a indagação acerca dessa ou daquela qualidade intrínseca da vítima para se averiguar se no caso concreto está ou não está configurada hipótese de responsabilidade objetiva, já que esta decorre da natureza da atividade administrativa, a qual não se modifica em razão da simples transferência da prestação dos serviços públicos a empresas particulares concessionárias do serviço”.

Ao examinar pontualmente o tema em questão, Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez, assevera que o art. 37, § 6º, da Constituição não faz qualquer distinção no que concerne à qualificação do sujeito passivo do dano, ou seja, não exige que a pessoa atingida pela lesão ostente a condição de usuário do serviço. De fato, segundo o brocardo latino, ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemos. Nesse sentido, o citado autor sustenta que “para a produção dos efeitos supostos na regra é irrelevante se a vítima é usuário do serviço ou um terceiro em relação a ele. Basta que o dano seja produzido pelo sujeito na qualidade de prestador do serviço público. Também não se poderia pretender que, tratando-se de pessoa de Direito Privado, a operatividade do preceito só se daria quando o lesado houvesse sofrido o dano na condição de usuário do serviço, porque o texto dá tratamento idêntico às ‘pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos’. Assim, qualquer restrição benéfica a estes últimos valeria também para os primeiros, e ninguém jamais sufragaria tal limitação à responsabilidade do Estado”. [10]

Com fundamento nesse argumento, penso também que não se pode interpretar restritivamente o alcance do referido art. 37, § 6º, sobretudo porque o texto magno, interpretado à luz do princípio da isonomia, não permite que se faça qualquer distinção entre os chamados “terceiros”, isto é, entre usuários e não-usuários do serviço público, vez que todos eles, de igual modo, podem sofrer dano em razão da ação administrativa do Estado, seja ela realizada diretamente, seja por meio de pessoa jurídica de direito privado.

Não impressiona, data venia, o entendimento segundo o qual apenas os terceiros usuários do serviço público gozam de proteção constitucional decorrente da responsabilidade objetiva do Estado, porquanto têm o direito subjetivo de receber um serviço adequado. É que tal raciocínio contrapõe-se à própria natureza do serviço público, que, por definição, tem caráter geral, estendendo-se, indistintamente, a todos os cidadãos, beneficiários diretos ou indiretos da ação estatal.

Na espécie, não ficou evidenciado, nas instâncias ordinárias, que o acidente fatal que vitimou o ciclista ocorreu por culpa exclusiva da vítima ou em razão de força maior. Constato, no entanto, que restou comprovado o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, sendo tal condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado, ora recorrente, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

Isso posto, pelo meu voto, conheço do recurso extraordinário, mas nego-lhe provimento.

RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI


(v. Informativo 557)

RE 591874/MS*
Fonte: stf.jus.br

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