Civil - Usucapião
Interessante acórdão do STJ resolveu discussão sobre qual regra deve ser aplicada - para fim de usucapião extraordinário - quando a posse foi parcialmente exercida na vigência do Código Civil de 1916: incide, imediatamente, o Código de 2002.
A decisão foi prolatada em recurso especial interposto nos autos de ação de usucapião extraordinário ajuizada por José Vieira Cardoso contra Emanuel Toscano Dantas, em que o autor fundamentou seu pedido nos artigos 1.238, caput e § único, 1.241 e 1.242, todos do Código Civil de 2002, alegando exercer, há 24 anos, a posse mansa, ininterrupta e pacífica de três imóveis situados na na cidade de Petrópolis (RJ).
O pedido foi julgado improcedente pelo Juízo da 1ª Vara Cível Regional de Itaipava (RJ), fundamentada a sentença em ausência de transcurso do prazo vintenário previsto no art. 550 do Código Civil de 1.916, por aplicação da regra de transição prevista no art. 2.028 do Código de 2002. A apelação foi desprovida e a sentença, mantida.
Junto ao STJ, o autor sustentou ofensa ao art. 2º, § 1º, do Decreto-lei n.º 4.657⁄42 (LICC) e ao art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, porque este - expressamente - teria revogado as disposições em contrário, não devendo ser considerados os prazos prescricionais do Código de 1.916.
Assim, o prazo para aquisição de domínio mediante usucapião seria de dez anos, nos termos do art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002. De todo modo, ainda argumentou que, mesmo considerando que o prazo para prescrição aquisitiva fosse o vintenário, este também estaria implementado, porque a ação de reintegração de posse ajuizada pelos réus não interrompe a prescrição, pois a sentença foi terminativa.
No seu voto, o relator, ministro Luís Felipe Salomão, ensinou, primeiramente, que o usucapião se dá na conjunção de todos os requisitos legais: "irrelevante sindicar se a posse do autor sobre os terrenos que discrimina na inicial foi ininterrupta, sem oposição, de boafé e com ânimo de dono, se não o foi pelo prazo legal."
No caso dos autos, disse o relator que o prazo para o usucapião extraordinário é o de dez anos, previsto no art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, em razão do estabelecimento de moradia habitual, sendo que a regra de transição aplicável à hipótese não é a insculpida no art. 2.028 (regra geral), mas a do art. 2.029, que prevê forma específica de transição.
"Em realidade, a redução do lapso temporal promovida pelo art. 1.238, § único, aliada à regra específica de transição eleita pelo legislador ordinário, no art. 2.029 do Código Civil, agasalham e dignificam a função social da propriedade, cujo exercício pelo possuidor do imóvel acarreta consequências jurídicas diferenciadas, se comparadas àquelas decorrentes da posse desqualificada, sem destinação social necessária, a prevista no caput do art. 1.238", considerou o magistrado.
Segundo o acórdão, o artigo 2.029 tem aplicação imediata às posses ´ad usucapionem´ já iniciadas, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do Código anterior, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do novo Código.
Esses dois anos de acréscimo devem ser somados também às posses que superam dez anos, sendo inadmissível qualquer prazo como consumado em 11.01.2003, ou mesmo antes da entrada em vigor da nova lei. "Nesse caso, a lei estaria realmente a atingir somente fatos pretéritos, perdendo o proprietário o domínio do imóvel pela inércia praticada antes mesmo da lei nova".
"Ademais, a surpresa causada por essa mudança abrupta é incongruente com a própria existência de uma norma de transição", concluiu o ministro, que ainda ofereceu esclarecedora síntese:
"Se, em 11.01.2003:
a) a posse for igual ou superior a 9 (nove) anos, e não ultrapassar 18 (dezoito) anos, ao tempo já implementado somam-se 2 (dois) anos;
b) se a posse for igual ou superior a 18 (dezoito) anos, aplica-se o prazo da lei anterior, em respeito ao próprio escopo da lei nova;
c) se a posse for inferior a 9 (nove) anos, aplica-se de imediato o novo prazo, que somente se aperfeiçoará após 11.01.2005, fora, portanto, do lapso temporal de transição.
No entanto, há hipóteses novas derivantes das usucapiões extraordinária e ordinária, em que houve redução de prazo de uma e outra.
São como subespécies dessas modalidades, em que os prazos de quinze de dez anos foram reduzidos, respectivamente, para dez e cinco, conforme se infere dos parágrafos únicos dos arts. 1.238 e 1.242."
Assim, se o art. 2.029, respeitada a fórmula de transição, manda aplicar de imediato o art. 1.238, § único, do CC⁄02, nega vigência a este último a decisão que não o considera em vigor. Decidiu o relator, então, conhecer em parte do recurso especial e lhe dar provimento, para que novo julgamento no primeiro grau seja proferido, analisando-se o mérito quanto aos demais requisitos para o acolhimento do pleito. Seu voto foi acompanhado por unanimidade. (Proc. nº 1.088.082).
ÍNTEGRA DO ACÓRDÃO
EV - Usucapião extraordinário tem regra própria de transição entre Códigos CivisRECURSO ESPECIAL Nº 1.088.082
RELATOR:MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORECORRENTE:JOSÉ VIEIRA CARDOSO ADVOGADOS:ANTÔNIO CARLOS DANTAS RIBEIRO JOSÉ THOMAZ NABUCO DE ARAÚJO E OUTRO(S)RECORRIDO :EMANUEL TOSCANO DANTAS E OUTROSADVOGADO:CLÁUDIA VALADARES THEODORO E OUTRO(S)
EMENTA
DIREITOS REAIS. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. POSSE PARCIALMENTE EXERCIDA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. APLICAÇÃO IMEDIATA DO ART. 1.238, § ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INTELIGÊNCIA DA REGRA DE TRANSIÇÃO ESPECÍFICA CONFERIDA PELO ART. 2.029. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA EXTENSÃO, PROVIDO.
1. Ao usucapião extraordinário qualificado pela "posse-trabalho", previsto no art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, a regra de transição aplicável não é a insculpida no art. 2.028 (regra geral), mas sim a do art. 2.029, que prevê forma específica de transição dos prazos do usucapião dessa natureza.
2. O art. 1.238, § único, do CC⁄02, tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas, "qualquer que seja o tempo transcorrido" na vigência do Código anterior, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de 2002.
3. A citação realizada em ação possessória, extinta sem resolução de mérito, não tem o condão de interromper o prazo da prescrição aquisitiva. Precedentes.
4. É plenamente possível o reconhecimento do usucapião quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, por força do art. 462 do CPC, que privilegia o estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu o direito do autor ou de improcedência quando o direito pleiteado na inicial, delineado pela causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, retificando a decisão proclamada no julgamento ocorrido dia 02 de fevereiro de 2010, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nessa parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP), Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 02 de março de 2010(Data do Julgamento).
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.088.082 - RJ (2008⁄0197154-5)
RECORRENTE:JOSÉ VIEIRA CARDOSO ADVOGADOS:ANTÔNIO CARLOS DANTAS RIBEIRO JOSÉ THOMAZ NABUCO DE ARAÚJO E OUTRO(S)RECORRIDO :EMANUEL TOSCANO DANTAS E OUTROSADVOGADO:CLÁUDIA VALADARES THEODORO E OUTRO(S)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. José Vieira Cardoso ajuizou ação de usucapião extraordinário, com fulcro nos arts. 1.238, caput e § único, 1.241 e 1.242, todos do Código Civil de 2002, em face de Emanuel Toscano Dantas e outros quatro réus, alegando exercer, por 24 (vinte e quatro) anos, a posse mansa, ininterrupta e pacífica de três imóveis situados na Estrada do Secretário, n.º 986, na cidade de Petrópolis, descritos na inicial.
O pedido foi julgado improcedente pelo Juízo de Direito da 1ª Vara Cível Regional de Itaipava, Comarca de Petrópolis, fundamentada a sentença em ausência de transcurso do prazo vintenário previsto no art. 550 do Código Civil de 1.916, aplicando-se a regra de transição prevista no art. 2.028 do Código ora vigente. (fls. 684⁄688)
Irresignado, o autor manejou recurso de apelação, improvido por acórdão assim ementado:
APELAÇÃO. Ação de usucapião. Regência do Código Civil de 1916, ainda que a posse tenha tido início em 1986. Inteligência do art. 2.028 do CC⁄02. Espécie extraordinária, exigente de posse vintenária. Requisito temporal desatendido: não se consumou o lapso prescricional aquisitivo, que, ademais, não fluiu contra menor. Prazo também interrompido pela citação válida do usucapiente em ação possessória, que, nada obstante improcedente, produziu os efeitos previstos no art. 219 do CPC. Jurisprudência dominante. Recurso a que se nega provimento. (fl. 737)
_________________________
Opostos embargos de declaração, foram eles rejeitados pelo acórdão de fls. 754⁄755.
Sobreveio assim recurso especial, fulcrado na alínea "a" do permissivo constitucional, no qual se alega:
a) ofensa ao art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei n.º 4.657⁄42 (LICC) e art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, porquanto este expressamente revogou as disposições em contrário, razão pela qual não haveria de se considerar os prazos prescricionais do Código de 1.916; com efeito, o prazo para aquisição de domínio mediante usucapião seria de dez anos, nos termos do art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002;
b) maltrato ao art. 550 do Código Civil de 1.916, tendo em vista que, mesmo considerando que o prazo para prescrição aquisitiva seja o vintenário, este também ter-se-ia implementado, uma vez que a ação de reintegração de posse ajuizada pelos réus não teria a virtualidade de interromper a prescrição, pois que a sentença foi terminativa, não configurando oposição válida para ensejar a interrupção do prazo prescricional.
Admitido o especial na origem (fls. 792⁄794), ascenderam os autos a esta E. Corte Superior.
Em parecer subscrito pelo ilustre Subprocurador-Geral da República João Pedro de Saboia Bandeira de Mello Filho, o Ministério Público Federal opina pelo improvimento do recurso. (fls. 809⁄813)
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.088.082 - RJ (2008⁄0197154-5)
RELATOR:MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORECORRENTE:JOSÉ VIEIRA CARDOSO ADVOGADOS:ANTÔNIO CARLOS DANTAS RIBEIRO JOSÉ THOMAZ NABUCO DE ARAÚJO E OUTRO(S)RECORRIDO :EMANUEL TOSCANO DANTAS E OUTROSADVOGADO:CLÁUDIA VALADARES THEODORO E OUTRO(S)EMENTA
DIREITOS REAIS. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. POSSE PARCIALMENTE EXERCIDA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. APLICAÇÃO IMEDIATA DO ART. 1.238, § ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INTELIGÊNCIA DA REGRA DE TRANSIÇÃO ESPECÍFICA CONFERIDA PELO ART. 2.029. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA EXTENSÃO, PROVIDO.
1. Ao usucapião extraordinário qualificado pela "posse-trabalho", previsto no art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, a regra de transição aplicável não é a insculpida no art. 2.028 (regra geral), mas sim a do art. 2.029, que prevê forma específica de transição dos prazos do usucapião dessa natureza.
2. O art. 1.238, § único, do CC⁄02, tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas, "qualquer que seja o tempo transcorrido" na vigência do Código anterior, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de 2002.
3. A citação realizada em ação possessória, extinta sem resolução de mérito, não tem o condão de interromper o prazo da prescrição aquisitiva. Precedentes.
4. É plenamente possível o reconhecimento do usucapião quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, por força do art. 462 do CPC, que privilegia o estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu o direito do autor ou de improcedência quando o direito pleiteado na inicial, delineado pela causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Noticia o caderno processual que o autor ajuizou ação de usucapião em 28.10.2003, sustentando basicamente a tese de que seriam as normas do Código Civil de 2002 que tutelariam a hipótese tratada nos autos, o que renderia ensejo à procedência do pedido, uma vez que a posse ad usucapionem ter-se-ia por iniciada em 1986, quando da morte do antigo proprietário, e o prazo prescricional a que alude o art. 1.238, § único, do CC⁄02, implementara-se em 1.996.
O acórdão recorrido, exarado pela 2ª Câmara Cível do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, manteve a sentença de improcedência, ao fundamento de que o prazo aplicável à espécie seria o do Código Beviláqua, por força da regra de transição insculpida no art. 2.028 do Código Civil atual.
Colhem-se do voto condutor os seguintes fundamentos:
O usucapião, por constituir modo originário de aquisição da propriedade, somente se aperfeiçoa em presença concomitante dos requisitos legais. Vale dizer que a ausência de um só deles impede a aquisição, independentemente da eventual presença dos demais.
É o caso destes autos. Irrelevante sindicar se a posse do autor sobre os terrenos que discrimina na inicial foi ininterrupta, sem oposição, de boafé e com ânimo de dono, se não o foi pelo prazo legal. A posse justa que se convola em propriedade é aquela exercida pelo tempo estabelecido na norma de regência, cumulativamente com os demais elementos objetivos e subjetivos do instituto. O autor não implementou o requisito temporal, inútil indagar sobre os demais elementos, como bem decidiu a sentença.
Veja-se que, na inicial desta ação de usucapião, o autor arrima o pedido em disposições do Código Civil de 2002. Todavia, todos os requisitos para a aquisição originária se sujeitavam ao regime da lei civil de 1916: o recorrente começou a residir em parte do imóvel (casa do caseiro do sítio) em 1978, após enchente que lhe destruiu a moradia própria, por isto que o proprietário da área usucapienda lhe permitiu nesta estabelecerse até que recuperasse a casa destruída (daí a convicção da sentença quanto a cuidar-se de comodato); falecido o proprietário em 1986, o autor passou a ocupar a casa principal e a introduzir-lhe benfeitorias, sem oposição, inclusive locando a terceiros outros cômodos da casa. Os fatos e sua cronologia encontram-se bem estabelecidos na sentença que julgou a ação de reintegração de posse aforada pelos ora apelados, e que tramitou entre 1998 e 2003 (fls. 25-32).
Fica claro que o regime do usucapião almejado era o do Código de 1916, que exigia posse vintenária (1978-1998), e, não, o regime do Código de 2002, que passou a exigir 15 anos, reduzidos a dez se “o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”, tal como argumenta o apelante, invocando o disposto no art. 1.238, e seu parágrafo único, do vigente Código, hipótese essa desconhecida da lei civil de 1916 (artigos 550 e seguintes).
(...)
Vero é que o art. 2.028 do Código Civil, posto em vigência a partir de 11.01.2003, traçou regra de transição no concernente a prazos, no sentido de que, quando reduzidos pela lei nova, continuarão sendo os da lei anterior se, na data da entrada em vigor daquela, “já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”. No caso, adotada a tese autoral de que a posse teve início em 1986, em janeiro de 2003 haviam transcorrido mais de dez anos, metade do prazo vintenário que o Código Civil de 1916 fixava para a prescrição aquisitiva extraordinária.
O desdobramento lógico do raciocínio do apelante conduziria ao absurdo. Contado o novo prazo usacapiendo, de 15 ou de 10 anos do art. 1.238 do CC⁄02, haveria situações em que o lapso prescricional ter-se-ia consumado antes mesmo da edição do novo Código, autorizando o acolhimento de prazo que sequer existia em face da lei de 1916. É, exatamente, a hipótese que se apresentaria no caso vertente. Uma vez que a posse apta ao usucapião teve início, segundo o recorrente, em 1986, se dessa data se contassem os 15 ou 10 anos do art. 1.238 do CC⁄02, a prescrição aquisitiva ter-se-ia consumado em 2001 ou 1996, quer dizer, antes mesmo de existir o novo Código e quando ainda vigorava o prazo vintenário do código de 1916.
A exegese que afasta o absurdo é de que a regra de transição, a que se apega o aqui apelante, somente pode ser aplicada a partir de 11.01.2003. Ou seja, meses antes de haver aforado esta ação. Assim, os 15 ou 10 anos do art. 1.238 somente seriam contados a partir dessa data, não de 1986. O que afastaria de vez o cumprimento do lapso que autoriza a aquisição do domínio pelo usucapião. (fls. 738⁄740)
_________________________
Dessume-se do excerto que os julgadores equivocaram-se na premissa normativa da qual parte a fundamentação.
De fato, se a tese autoral foi a de que o prazo para o usucapião extraordinário é o de 10 (dez) anos, previsto no art. 1.238, § único, do Código Civil de 2002, em razão do estabelecimento de moradia habitual, a regra de transição aplicável à hipótese não é a insculpida no art. 2.028 (regra geral), mas sim a do art. 2.029, que prevê forma específica de transição dos prazos do usucapião extraordinário, quando presentes as circunstâncias do § único, do art. 1.238.
3. Com efeito, o art. 2.029, que dispõe especificamente sobre a contagem do prazo nos casos de usucapião extraordinário qualificado, está assim redigido:
"Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916".
Por sua vez, o art. 1.238 e seu parágrafo, tratando do usucapião no novo Código Civil, contêm a seguinte redação:
"Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo".
Verifica-se, portanto, que o legislador ordinário - em observância mesmo do que preceituam princípios de estatura constitucional - pretendeu atribuir regra de transição específica e mais expedita ao usucapião extraordinário, "se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo", aplicando-se a mesma regra ao art. 1.242, § único, que, por seu turno, possui comando análogo.
Em realidade, a redução do lapso temporal promovida pelo art. 1.238, § único, aliada à regra específica de transição eleita pelo legislador ordinário, no art. 2.029 do Código Civil, agasalham e dignificam a função social da propriedade, cujo exercício pelo possuidor do imóvel acarreta consequências jurídicas diferenciadas, se comparadas àquelas decorrentes da posse desqualificada, sem destinação social necessária, a prevista no caput do art. 1.238.
E foi exatamente este o propósito do legislador ao engendrar prazo e regra de transição diferenciados para o usucapião extraordinário, qualificado pela "posse-trabalho": a um só tempo, não se olvidar da segurança jurídica dos proprietários, até então inertes em seu direito de propriedade, e positivar em nível infraconstitucional um comando conformador da função social da propriedade.
Apregoa-se, assim, que a época presente encontra-se sob a égide de ordenamento jurídico bastante diferenciado daquele sob o qual foi editado o Código de 1.916, em que o individualismo e a livre disposição do patrimônio constituíam-se cânones fundantes de todo o sistema.
Agora, o princípio norteador da propriedade é sua função social, sendo os comandos normativos contidos nos arts. 1.238, § único, e 2.029, do CC⁄02, consentâneos com esse propósito.
Sobre o tema, confira-se também autorizada doutrina civilista:
Dentro, portanto, do princípio da sociabilidade que norteou a feitura da lei - cujos reflexos também podem ser sentidos no Direito Contratual (arts. 421 e 422) -, verifica-se a constitucionalização, em nível ordinário, das concepções de posse e propriedade concebidas na Magna Carta. Em outras palavras, não há grande novidade na idéia de redução de prazo, quando se demonstre que o possuidor imprimiu destinação socioeconômica ao imóvel, uma vez que a Carta da República, valorizando o solidarismo social, a dignidade da pessoa humana e o trabalho, já determinava a necessidade de a legislação inferior observar estes vetores principiológicos (Comentários ao Código Civil brasileiro, v. 17: do direito das sucessões. MELO, Henrique Ferraz Corrêa. PRADO, Maria Isabel do. GAGLIANO, Pablo Stolze. Coordenadores: ARRUDA ALVIM e THEREZA ALVIM. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 590).
_________________________
4. Com efeito, o usucapião extraordinário e o ordinário, com posses desqualificadas, previstos nas cabeças dos arts. 1.238 e 1.242, respectivamente, além de possuírem prazos mais dilatados (15 e 10 anos), estão sujeitos à regra geral de transição prevista no art. 2.028, ao passo que se a posse exercida for qualificada, ou "posse-trabalho", para usar a feliz expressão cunhada por Miguel Reale no anteprojeto, o possuidor será agraciado não só com a redução dos prazos, mas também com regra célere de transição para o atual Código (art. 2.029).
Note-se que, para a hipótese em apreço, o autor fundou o pedido inicial no art. 1.238, § único, acima transcrito, invocando, portanto, o usucapião extraordinário qualificado.
5. Resta, portanto, examinar qual o alcance da regra insculpida no art. 2.029 em relação às posses iniciadas na vigência do Código Beviláqua.
Nesse passo, verifica-se que o artigo tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas, "qualquer que seja o tempo transcorrido" na vigência do Código anterior, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de 2002.
Com efeito, extrai-se também da primeira parte do dispositivo (da fórmula "até dois anos após a entrada em vigor deste Código") que são exatamente dois anos o prazo de transição estabelecido pelo Código, de sorte que após esse interregno, ou seja, após 11.01.2005, o prazo será de 10 (dez anos), irrelevante também o tempo transcorrido anteriormente.
Por exemplo, se da entrada em vigor do atual Código (11.01.2003), um possuidor tivesse exercido sua posse por 10 (dez) anos, restariam-lhe ainda mais 2 (dois) anos para o implemento da regra de transição, somando assim 12 (doze) anos de posse, que seriam aperfeiçoados em 11.01.2005. Privilegia-se, assim, o escopo normativo de se reduzir o prazo prescricional, e não se surpreende o proprietário inerte, uma vez que teve estes 2 (dois) anos para recobrar sua posse.
A toda evidência, esses dois anos de acréscimo devem ser somados também às posses que superam 10 (dez) anos, sendo inadmissível - sob pena de retroação da lei - que se considere qualquer prazo como consumado em 11.01.2003, ou mesmo antes da entrada em vigor do Código. Nesse caso, a Lei estaria realmente a atingir somente fatos pretéritos, perdendo o proprietário o domínio do imóvel pela inércia praticada antes mesmo da lei nova. Ademais, a surpresa causada por essa mudança abrupta é incongruente com a própria existência de uma norma de transição.
Assim, quem em 11.01.2003 contasse, por exemplo, com 13 (treze) anos de posse, deveria esperar mais 2 (dois) para adquirir a propriedade por usucapião extraordinário, em 11.01.2005.
Nesse sentido, confira-se a doutrina de Mario Luiz Delgado, Problemas de direito intertemporal no novo Código Civil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 496.
De resto, quem em 11.01.2003 tivesse exercido a posse qualificada por 9 (nove) anos, deveria cumprir mais 2 (dois) anos para que em 11.01.2005, na iminência do fim prazo de transição, somasse 11 (onze) anos de posse, mais do que se exige daí em diante (10 anos) pelos arts. 1.238, § único, e 2.029.
Não é ocioso ressaltar que nenhuma interpretação deve anular o escopo da lei. Com efeito, tendo esta o propósito de redução dos prazos de prescrição aquisitiva, não se admite que do possuidor de imóvel há 19 (dezenove) anos, por exemplo, sejam exigidos os dois anos previstos no art. 2.029, sob pena de o usucapião somente se aperfeiçoar com 21 (vinte e um) anos de posse. Vale dizer, o novel Diploma, com o escopo de emprestar celeridade ao usucapião extraordinário, qualificado pela "posse-trabalho", acabaria por elastecer os prazos que estimara já por demais longos.
Por outro lado, é inconcebível que o novo prazo de 10 (dez) anos seja iniciado da vigência do novo Código, porquanto isso corresponderia exatamente ao que preceitua o art. 2.028, já que o prazo novo somente poderia ser aplicado se a posse não contasse com mais de dez anos, ou seja, se, na data da entrada em vigor do Código, não houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.
Quanto às posses incipientes não há problema, eis que o implemento do novo prazo somente ocorreria após o interregno transitório, de 11.01.2003 a 11.01.2005. Por exemplo, uma posse de 5 (cinco) anos na data da vigência do Código somente completaria os 10 (dez) anos em 11.01.2008, fora do lapso de transição exigido.
Em síntese, se, em 11.01.2003:
a) a posse for igual ou superior a 9 (nove) anos, e não ultrapassar 18 (dezoito) anos, ao tempo já implementado somam-se 2 (dois) anos;
b) se a posse for igual ou superior a 18 (dezoito) anos, aplica-se o prazo da lei anterior, em respeito ao próprio escopo da lei nova;
c) se a posse for inferior a 9 (nove) anos, aplica-se de imediato o novo prazo, que somente se aperfeiçoará após 11.01.2005, fora, portanto, do lapso temporal de transição.
Nesse sentido, confira-se o magistério de Benedito Silvério Ribeiro:
No entanto, há hipóteses novas derivantes das usucapiões extraordinária e ordinária, em que houve redução de prazo de uma e outra.
São como subespécies dessas modalidades, em que os prazos de quinze de dez anos foram reduzidos, respectivamente, para dez e cinco, conforme se infere dos parágrafos únicos dos arts. 1.238 e 1.242.
Dispõe o art. 2.029 do Código Civil:
"Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916".
Não guarda o focado dispositivo qualquer relação com o preceito do art. 2.028.
Assim, por exemplo, quem já tivesse os dez anos de posse na ocasião da vigência do novo Código teve de esperar mais dois para que pudesse valer-se da usucapião prevista no parágrafo único do art. 1.238. Quem contasse com cinco anos em 11 de janeiro de 2003 só podia promover ação de usucapião a partir de 11 de janeiro de 2005.
Conquanto não se trate de usucapião, deu-se igual acréscimo nos casos a que se refere o § 3º do art. 1.228, conforme estabelecido no art. 2.030.
A finalidade do biênio, espécie de vacatio temporis, foi a de evitar surpresa para o proprietário que viria a perder a propriedade, uma vez que significa confisco dar-se já por consumada a prescrição na vigência do novo Código. (Tratado de usucapião, volume 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 784⁄785)
6. Na hipótese tratada nos autos, a solução a que chegou o acórdão recorrido merece reforma.
De fato, se o art. 2.029, respeitada a fórmula de transição, manda aplicar de imediato o art. 1.238, § único, do CC⁄02, nega vigência a este último a decisão que não o considera em vigor, aplicando o prazo da legislação revogada.
Nesse sentido, é a clássica lição de Aliomar Baleeiro, para quem:
Nega vigência à lei federal não só a decisão que afirma não estar ela em vigor, porque já não vigora, ou ainda não vigora, mas também a que não a aplica, quando ela é aplicável, ou pretendendo ou fingindo aplicá-la, faz o frontalmente oposto do que diz, na letra e no espírito, o texto traído. (RTJSTF 51⁄828)
Por outro lado, não subsiste o óbice arguido pelo acórdão, de que a citação realizada em ação possessória, extinta sem resolução de mérito, teria o condão de interromper o prazo da prescrição aquisitiva.
A jurisprudência da Casa não sufraga tal tese:
RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. AÇÃO POSSESSÓRIA IMPROCEDENTE. CITAÇÃO. EFEITO INTERRUPTIVO. AUSÊNCIA. NOTIFICAÇÃO E⁄OU PROTESTO. CONDIÇÕES. DIVERGÊNCIA.
1. Uma vez julgada improcedente a ação possessória, a citação não tem efeito interruptivo da prescrição aquisitiva.
2. Notificação judicial ou protesto para interromper a prescrição aquisitiva deve ter fim específico e declarado.
(...)
5. Recurso especial não conhecido.
(REsp 149.186⁄RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 04⁄11⁄2003, DJ 19⁄12⁄2003 p. 466)
_________________________
CIVIL. USUCAPIÃO. CITAÇÃO DO POSSUIDOR EM AÇÃO POSSESSÓRIA. A ação possessória julgada improcedente não interrompe o prazo para a aquisição da propriedade pelo usucapião. Recurso especial não conhecido.
(REsp 10.385⁄PR, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 11⁄05⁄1999, DJ 14⁄06⁄1999 p. 185)
_________________________
É de se ressaltar ainda que a doutrina civilista moderna entende ser possível a declaração de usucapião quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, verbis:
Porém, se o prazo for completado no curso da lide, entendemos que o juiz deverá sentenciar no estado em que o processo se encontra, recepcionando o fato constitutivo do direito superveniente, prestigiando a efetividade processual, a teor do art. 462 do Código de Processo Civil. É de se compreender que a prestação jurisdicional deverá ser concedida de acordo com a situação dos fatos no momento da sentença.
Não se esqueça, por sinal, que a citação feita ao proprietário na ação de usucapião não se insere dentre as causas interruptivas da usucapião. Ora, o art. 202, inciso I, do Código Civil foi instituído em proveito daquele a quem o prazo da usucapião prejudicaria apenas nas ações por ele ajuizadas, mas não naquelas contra ele promovidas. Daí a necessidade de se outorgar eficácia jurídica ao fato superveniente, pois a lide mudou de configuração no seu curso. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 272)
_________________________
Confira-se ainda, no mesmo sentido, a grandiosa obra de Benedito Silvério Ribeiro, Tratado de Usucapião, p. 698.
De fato, o art. 462 do CPC autoriza tal providência:
"Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença".
Como se percebe, o "fato constitutivo" a que se refere o dispositivo permite, tanto ao Juízo singular como ao Tribunal, a análise de circunstâncias outras que, devido a sua implementação tardia, não eram passíveis de resenha inicial.
A solução proposta pelo artigo ora examinado tem como escopo a economia processual, para que a tutela jurisdicional a ser entregue não seja uma mera resposta a formulações teóricas, sem qualquer relevo prático.
Privilegia-se, assim, o estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu o direito do autor ou de improcedência quando o direito pleiteado na inicial, delineado pela causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes (REsp 500182⁄RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03⁄09⁄2009, DJe 21⁄09⁄2009).
No caso dos autos, a alegativa do autor, reconhecida pelo Tribunal a quo, é que a posse ad usucapionem teve início em 1986. O juízo sentenciante - o que foi confirmado pelo Tribunal - entendeu que em 28.10.2003, quando ajuizada a ação, o autor possuía os imóveis havia cerca de 13 (treze anos), já que o entendimento que prevaleceu foi o de que a ação possessória interrompera o prazo de prescrição aquisitiva.
Porém, ainda se assim o fosse, a sentença somente foi proferida em agosto de 2007, quando o autor contava com posse de cerca de 17 (dezessete) anos, superando o prazo novo de 10 (dez) anos (art. 1.238, § único, CC⁄02), também já exaurido estava o lapso de transição previsto no art. 2.029, o que, em tese, afasta o óbice temporal levantado nas instâncias locais.
8. De resto, é de se ressaltar que a alegada menoridade de um dos réus não inviabiliza totalmente o pedido, uma vez que, como bem restou firmado na sentença, o menor somente era proprietário de um dos imóveis (fl. 687).
9. Diante do exposto, como a demanda foi decidida com base apenas na falta do preenchimento do lapso temporal apto a ensejar usucapião, e agora se reconhece a violação ao art. 1.238, § único, do CC⁄02, conheço em parte do recurso especial e, na extensão, dou-lhe provimento, para que novo julgamento no primeiro grau seja proferido, analisando-se o mérito quanto aos demais requisitos para o acolhimento do pleito.
É como voto.
QUARTA TURMA
Número Registro: 2008⁄0197154-5REsp 1088082 ⁄ RJ
Números Origem: 101462008 125722008 20030790016314 200800112572 200813510146
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Agradecemos pelo seu comentário.